Educação em valores deve ser coletiva, prioritária e intencional.
Professor, gestor escolar e doutor em Psicologia pela Universidade de Valladolid (Espanha), José María Avilés Martinez é uma referência global em estratégias de combate ao bullying, ao cyberbullying e aos diferentes fenômenos que afetam a convivência escolar. Tendo como base seu trabalho em Valladollid, Martinez tem colaborado com grupos de pesquisa no Brasil e acompanhado pessoalmente a implantação de suas ideias, traduzidas na metodologia Prires. Em sua última visita ao país, a Educatrix foi conhecer mais sobre a metodologia e o trabalho do educador.
Educatrix: A agenda de temas urgentes em educação é ampla em todo o mundo. Entre tantas prioridades, qual é o lugar da educação em valores e do tema da convivência escolar?
José María Avilés Martinez: O trabalho das escolas no campo dos valores é crucial e deve ser central, porque se trata de um tema transversal que impregna a atuação de todos os agentes educativos. Em uma sociedade democrática, que demanda da escola a formação de cidadãos para o futuro, é imprescindível que a escola exerça esse mandato de forma consciente. Por isso, é importante explicitar a educação em valores como uma tarefa planejada, intencional e compartilhada por todos de forma colaborativa, sejam famílias, professores ou o próprio alunado.
Educatrix: A convivência escolar permite aprender sobre valores?
J.M.A.M. Sim! A convivência escolar é um ambiente privilegiado por colocar em jogo esses valores. Ao pô-los em prática, permite-se aprendê-los a partir de situações espontâneas e habituais, como conflitos, ou por meio de circunstâncias planejadas, que trabalham intencionalmente valores como o respeito, a solidariedade, a tolerância e a igualdade. Uma escola pode, por meio de seu Plano de Convivência e das atuações a partir dele, planejar o trabalho em valores com reflexões e debates coletivos de suas experiências, propondo práticas sistematizadas com o uso das melhores estratégias.
Educatrix: Qual é a melhor definição de bullying e como diferenciá-lo do cyberbullying?
J.M.A.M. Trata-se do mesmo fenômeno, embora com diferenças decisivas. Em ambos existem três componentes definidores: o desequilíbrio de poder que torna o agressor mais forte que sua vítima (física, social, digital ou psicologicamente); a intencionalidade expressa em situações planejadas para causar dano; e a recorrência ou a repetição que leva os atores a persistirem em um cenário em que ambos ocupam posições de domínio ou submissão diante dos olhos de testemunhas. Assim, a definição de assédio pode ser maus-tratos repetidos entre jovens em idade escolar, mantidos ao longo do tempo, quase sempre longe dos olhos dos adultos, com a intenção de humilhar e sujeitar abusivamente uma vítima indefesa por um agressor ou grupo com resultados de vitimização psicológica e rejeição de grupo. Já o cyberbullying acontece quando um sujeito recebe repetidas agressões abusivas por meio de mídias móveis ou ambientes virtuais, com o objetivo de prejudicá-lo e a seu status social, reduzir as chaves socioemocionais e tirar proveito do anonimato. A vítima está em uma posição ainda pior do que no bullying com relação àqueles que a maltratam. Quem sofre vitimização tem menos segurança, menos controle e mais imprevisibilidade. Quem pratica o abuso deixa de reconhecer os sentimentos da vítima por agir do outro lado de uma tela, não recebe feedback do sofrimento e isso torna deficitário o
O pilar decisivo é a intenção educacional das ações implementadas, um olhar que permite construir processos a partir dos alunos, do que são, do que têm, do que sentem e com um impacto explícito no que os motiva e os preocupa.
José María Avilés Martinez
Seu pensamento sobre as consequências de seus atos. Contextualmente, o cyberbullying aumenta o número de testemunhas e prolonga a permanência do dano enquanto as imagens ou os vídeos ofensivos ainda forem propagados na rede.
Educatrix: Há uma tendência a piorar o problema do cyberbullying?
J.M.A.M. É importante abordar o fenômeno educacionalmente, porque se nada for feito os problemas podem aumentar e os sujeitos envolvidos podem se sentir muito mal e procurar soluções enganosas de fuga. Até agora, o que muitas escolas fizeram foi proibir dispositivos em seu ambiente; outras permitem o seu uso, mas mantêm uma distância educativa que não fornece pistas ou critérios para o relacionamento que os jovens estabelecem. A atuação da instituição deve ser proativa e preventiva, fornecendo critérios razoáveis para os alunos tomarem decisões corretas na gestão de seus relacionamentos na internet. Com as famílias, é preciso ter diretrizes de suporte e supervisão do relacionamento com os dispositivos, regulando o tempo, o conteúdo e os locais de uso. Com o corpo docente, no currículo escolar, apoiar o uso positivo das redes sociais para a aprendizagem dos alunos e para o trabalho colaborativo. Esse conjunto de ações vale tanto para o enfrentamento dos riscos da rede, como para uma utilização saudável desses dispositivos digitais pelos alunos, para que se tornem autônomos, independentes, respeitosos e felizes em usá-los.
Educatrix: O bullying é um problema estritamente escolar?
J.M.A.M. O bullying não é um fenômeno estritamente escolar. Acontece na escola, sim, mas como um reflexo da própria sociedade. Na escola, chamamos isso de bullying entre iguais; na família, de violência de gênero, abuso de idosos ou abuso de crianças; no local de trabalho, chamamos de assédio moral. Poderíamos continuar em outros setores sociais ou políticos, colocando rótulos diferentes em processos semelhantes. Trata-se de um problema social de se exercer o poder de maneira abusiva, de violência replicada em diferentes espaços de relacionamento. Portanto, a reflexão sobre intimidação e maus-tratos entre iguais nos leva a um pensamento mais geral, sobre como concebemos nossos relacionamentos interpessoais, sobre como exercemos poder e que espaço damos aos direitos de outras pessoas em nossa interação. Em resumo, devemos pensar em como colocamos em jogo os valores do relacionamento e da convivência democrática em nossos ambientes próximos. Se a escola deve continuar a ser um motor de transformação social, é a partir dela que vamos trabalhar para a construção de valores de solidariedade, respeito, justiça e igualdade, modelos de relacionamentos interpessoais saudáveis, em que a cultura do cuidado e da ajuda impere frente à imposição e ao abuso.
Educatrix: Como pesquisador, diretor e educador, você construiu uma visão multidisciplinar sobre o cyberbullying que resultou em uma metodologia de referência. O que diz essa metodologia?
J.M.A.M. Apresentei recentemente o Prires, um programa educacional para orientar a gestão de redes sociais e em situações de cyberconvivência que está sendo aplicado nas escolas espanholas com a colaboração de famílias, professores e até estudantes que atuam como tutores de seus companheiros mais jovens. Fundamentalmente, essa abordagem multidisciplinar me ajudou a ter uma perspectiva de trabalho muito coletiva, colaborativa e participativa com os colégios que assessoro e com os diferentes agentes educacionais. Assim, trabalhamos com os professores em estruturas como as equipes de convivência e os tutores, e entre os alunos com estruturas criadas por nós, como equipes de ajuda ou equipes de mediação. A orientação sobre bullying e cyberbullying baseia-se no trabalho preventivo de valores e convivência escolar. É um caminho de ida e de volta. Valores e boa convivência são trabalhados para evitar o assédio moral e, ao mesmo tempo, temos estratégias específicas para lidar com o abuso de colegas, porque sabemos que apenas trabalhar na convivência escolar não é suficiente.
Educatrix: Quais são os pilares do seu trabalho?
J.M.A.M. Os pilares fundamentais são: o trabalho proativo e preventivo contra medidas reativas; a construção de estratégias de equipe que promovam ações coletivas previamente debatidas e acordadas contra soluções individualistas; a implementação de processos de baixo para cima, ou seja, que surgem da necessidade das equipes que tomam decisões e que tornam suas respostas originais e não repetíveis, sempre projetadas para os problemas da própria escola. Por fim, o pilar decisivo é a intenção educacional das ações implementadas, um olhar que permite construir processos a partir dos alunos, do que são, do que têm, do que sentem e com um impacto explícito no que os motiva e os preocupa. O envolvimento dos estudantes na solução de seus problemas é uma condição indispensável. Sem dúvida, também é preciso uma visão recíproca: os professores e os adultos precisam acreditar no lado positivo dos alunos para ajudá-los a alcançar seus próprios objetivos.
Educatrix: Quais os primeiros passos para uma escola que, a partir de agora, quer resolver a questão do bullying?
J.M.A.M. Em geral, começar por estratégias conjuntas, porque o assédio e a intimidação são abordáveis quando os enfrentamos de maneira coordenada, levando em consideração a perspectiva e a cultura das famílias, a liderança e o conhecimento dos professores e equipes de gestão das escolas e o protagonismo dos estudantes como um grupo que não permite que comportamentos de assédio sejam instalados na sua própria cultura de convivência. Depois, aumentar a conscientização sobre a importância de trabalhar juntos para resolver o problema. É necessária sinergia entre professores, famílias e estudantes para que sejam competentes para dar uma resposta eficaz a essas situações e/ou atos de intimidação; construir protocolos e medidas preventivas para impedir que as ações de abuso se tornem fortes em contextos em que o silêncio e o consentimento prevalecem. Essas ações só são possíveis ao refletirmos como comunidade educacional na implementação de valores positivos que vão contra os valores de intimidação, como imposição, abuso, medo, coerção ou desrespeito. Trabalhar valores como tolerância, coragem, empatia, compaixão, assertividade e solidariedade dentro dos grupos faz com que a sala de aula adote outras atitudes e exemplos, que se tornam predominantes no discurso institucional da escola e no discurso informal dos alunos, ocupando o espaço, o tempo e os idiomas do grupo.
Educatrix: Você visitou escolas brasileiras e trabalhou com pesquisadores daqui. O desafio brasileiro é semelhante ao enfrentado em outros países?
J.M.A.M. Cada país tem seus desafios, suas vantagens e desvantagens, dependendo do seu desenvolvimento educacional e de sua cultura escolar. Nos últimos anos, transferimos para algumas escolas e grupos de pesquisa metodologias de convivência que estão obtendo resultados muito bons. Esses dados revelam diferenças entre os estudantes de nossos países em relação à adesão a valores como justiça, respeito, solidariedade e convivência democrática, em geral, justificados pelos diferentes trabalhos dos sistemas educativos sobre valores e pelas diferenças na sistematização das tarefas do corpo docente para promover a convivência escolar. O Brasil, como outros países, enfrenta um desafio de trabalhar este tema, a fim de generalizar estratégias educacionais eficazes e conscientizar os professores e as equipes de gestão sobre seu papel decisivo na implementação dos Planos de Convivência e no trabalho em valores.
Educatrix: Como adotar a abordagem que você propõe?
J.M.A.M. As escolas devem se olhar e se encontrar. Cada escola tem valor em si mesma para a tomada de boas decisões. É verdade que muitas escolas precisam de força, orientação e treinamento de pessoas que já fizeram essa jornada com outros grupos e que conhecem as etapas para alcançar os objetivos propostos. Estamos dispostos a ajudá-las nesse trânsito. O importante, mais do que o ponto de destino, são os processos que a própria escola constrói entre seus pares nessa viagem. Mas insisto, é necessário contar com as pessoas que formam a escola; sem elas, a viagem em si não será possível, nem se construirá qualquer coisa. Assessoramos e formamos equipes de gestão e de professores que desejam implementar planos de convivência ou projetos antibullying. Fornecemos materiais de formação e professores profissionalmente competentes em convivência em diferentes perspectivas e técnicas de trabalho que possibilitam a internalização dos valores democráticos nas escolas. No entanto, isso só será possível se os membros da comunidade escolar se envolverem, quiserem mudar o que fazem e procurar saídas ponderadas para seus problemas de coexistência e para a construção de valores futuros.
Educatrix: Qual é a relação entre educação em valores, qualidade de convivência e desempenho acadêmico?
J.M.A.M. Existem vários estudos que apoiam essa ideia e várias instâncias educativas já reconhecem na certificação acadêmica das qualificações dos alunos sua participação em ações relacionadas à promoção de valores e à construção de uma convivência positiva em seu entorno. Isso também se deve à demanda das empresas que buscam em seus colaboradores novas habilidades além do desempenho acadêmico de egressos, como a capacidade de trabalhar em grupo, a competência para resolver problemas de perspectivas inovadoras ou criativas ou habilidades para se colocar no lugar do outro. Finalmente, estudos recentes como o da Fundação BBVA sobre boas práticas educacionais na Espanha ou o estudo realizado por mim na Universidade de Valladolid, em escolas de Castilla e León, fornecem dados a esse respeito. As pesquisas identificam o trabalho em valores como um dos indicadores relevantes para o desempenho acadêmico, a eficácia e o sucesso escolar entre os alunos das escolas, que estão cada vez mais preocupadas em incluir em seu planejamento estratégico a implementação de valores para a construção da convivência democrática.
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