ESPECIAL Trilhas da BNCC | Matemática, outras áreas e os desafios do século XXI

ESPECIAL Trilhas da BNCC | Matemática, outras áreas e os desafios do século XXI

Resolver problemas, analisar dados e tomar  atitudes criativas no dia a dia.

Texto Fábio Martins de Leonardo

É comum encontrar pessoas que dizem não saber ou não gostar de matemática. Esse fato provavelmente é uma consequência do modo equivocado como essa ciência é ensinada nas escolas brasileiras: um estudo quase sempre segmentado e conteudista, carente de formação de professores e vulnerável à inconsistência do sistema educacional.  A matemática é uma das mais significativas conquistas do conhecimento humano, produzida e organizada ao longo da história por diversos povos e civilizações. É uma ciência que contribui para a compreensão, tradução e modelagem de situações em diversas áreas do conhecimento (astronomia, medicina, engenharia, arquitetura, arte e tecnologia da informação são alguns dos exemplos, só para se ter uma ideia). Além disso, vale ressaltar sua importância nas práticas cotidianas, como para a compreensão e tomada de decisões em situações financeiras, para a leitura e interpretação de gráficos e tabelas encontrados nos noticiários, para a elaboração de estimativas e inferências com base em análise de dados e para o desenvolvimento de estratégias de resolução de problemas, argumentação e exposição de ideias.  Ao estudar matemática, desenvolvemos competências, habilidades e atitudes tão imprescindíveis ao mundo do trabalho quanto à vida cotidiana. Por exemplo: planejar ações e projetar soluções para novos problemas de mercado, que exijam iniciativa e criatividade; compreender e transmitir ideias matemáticas, por escrito ou oralmente, desenvolvendo a capacidade de argumentação na sustentação de projetos; interpretar matematicamente situações do dia a dia ou do mundo tecnológico e científico e saber utilizar a matemática para resolver situações-problema nesses contextos; avaliar os resultados obtidos na solução de situações-problema para definições, por exemplo, de estratégias de marketing; fazer estimativas de resultados ou cálculos aproximados; utilizar os conceitos e procedimentos estatísticos e probabilísticos. No artigo “O pensamento computacional e a reinvenção do computador na educação”, Paulo Blikstein, professor na Escola de Educação e no departamento de Ciência da Computação da Universidade de Stanford nos EUA, discorre sobre as exigências do nosso mundo. “(…) o mundo atual exige muito mais do que ler, escrever, adição e subtração. A lista de habilidades e conhecimentos necessários para o pleno exercício da cidadania no século XXI é tão extensa quanto controversa. Não sabemos muito bem quais são essas habilidades, muito menos como ensiná-las.” Na sequência, ele fala da importância do “pensamento computacional” e sobre o ensino de ciências. “Felizmente, nossas pesquisas têm mostrado que os alunos aprendem ‘ciência computacional’ mais facilmente do que ciência tradicional, por uma série de fatores cognitivos, epistemológicos e motivacionais. Boa parte da ciência e da matemática que ensinamos na escola foi inventada porque não tínhamos computadores, e seu aprendizado é desnecessariamente difícil, afastando qualquer aluno mais criativo. Portanto, a habilidade de transformar teorias e hipóteses em modelos e programas de computador, executá-los, depurá-los, e utilizá-los para redesenhar processos produtivos, realizar pesquisas científicas ou mesmo otimizar rotinas pessoais, é uma das mais importantes habilidades para os cidadãos do século XXI. E, curiosamente, é uma habilidade que nos faz mais humano. Afinal, o que há de mais humano do que livrarmo-nos de tarefas repetitivas e focar no mundo das ideias?” Não são poucas as competências, habilidades e atitudes necessárias para o exercício da cidadania no século XXI, para o enfrentamento do mundo do trabalho e para a imersão no mundo da tecnologia. Atualmente, desenvolver o raciocínio lógico, a autonomia e a criatividade é mais importante do que aprender conteúdos. Nesse contexto, o professor é imprescindível para ajudar os alunos em seus percursos com foco onde querem chegar, ajudá-los a selecionar as informações que de fato precisam, prepará-los para o mundo como um todo, inclusive o do trabalho, tornando-os cidadãos críticos, criativos e autônomos.

Fábio Martins de Leonardo

é licenciado em Matemática pela Universidade de São Paulo. Elaborador e editor responsável da obra Conexões com a Matemática (PNLD 2018).

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Contra a pandemia das fake news, a vacina é a educação

Contra a pandemia das fake news, a vacina é a educação

O combate às fake news passa por uma educação que forme leitores críticos, capazes de diferenciar textos jornalísticos de ficcionais e de ler texto, subtexto e contexto.

Texto Paulo de Camargo

As notícias falsas não respeitam os fatos, a ciência, tampouco os sentimentos ou a segurança das pessoas. Até mesmo durante a pandemia da covid-19, mentiras desumanas como fotos de caixões carregados apenas com pedras, falsos remédios e teorias conspiratórias que alimentavam discursos de ódio circulavam pelas redes sociais. O advento das fake news colocou um imenso ponto de interrogação entre os seres humanos e a busca pela informação confiável. Notícias falsas sempre existiram, é certo, mas nunca conseguiram ganhar tal aparência de verdade, nem circular de maneira tão veloz, varrendo o mundo no espaço de poucos minutos como agora. E, se está no mundo, também pertence ao universo da educação e das escolas, envolvendo as crianças, os adolescentes e suas famílias. Como lidar com esse fenômeno, que só tende a se agravar? Responder a essa pergunta é o desafio da pesquisadora e jornalista Januária Alves, coautora do livro Como não ser enganado pelas fake news (Moderna), parte da coleção Informação e Diálogo. Quando fez seu mestrado na USP, há 15 anos, sobre grupos de crianças que produziam jornais, Januária se aproximou do mundo da educomunicação – área que estuda as intersecções entre educação e a produção de informação. Desde então, vem se aprofundando neste tema que se tornou um desafio global e agora integra a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). “O que há de novo nas fake news é a forma pela qual são produzidas e se proliferam”, afirma Januária, que vê os professores preocupados e se sentindo sem apoio para trabalhar uma área que desconhecem. As estratégias históricas, como discutir notícias em sala de aula, representam apenas um pequeno passo porque hoje, com as redes sociais, os alunos são produtores de informação. “É um trabalho de cidadania”, explica Januária, que participou da construção de um currículo de educação midiática para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. É isso o que as escolas vêm sentindo na pele. Muitas vezes, circulam informações não apenas mentirosas, como prejudiciais para alunos, professores e outros profissionais da Educação. Há dois anos, o diretor de uma tradicional escola da Zona Sul carioca estava a caminho de seu sítio, quando começou a receber mensagens torrenciais sobre um caso de racismo na escola, o que nunca de fato acontecera. “Ficamos indefesos, tendo que explicar algo que simplesmente não tinha origem ou base em verdade”, lembra o diretor, que nunca esqueceu o episódio e prefere não se identificar. Apenas no segundo semestre do ano passado, duas tradicionais escolas, uma em São Paulo e outra em Belo Horizonte, sofreram com a divulgação de notícias falsas sobre supostos casos de assédio sexual. Ao final, nada foi comprovado, em nenhum dos casos, mas os traumas permaneceram.

 

Por que acreditamos?

 

Muitas vezes, as notícias são absurdas, mas mesmo assim ganham tração e circulam. Segundo Januária, as pesquisas mostram que as fake news possuem um forte componente emocional. “Uma notícia falsa tem 70% mais chance de circular do que uma verdadeira. Existe um fator sedutor que é o desejo humano de contar histórias de impacto”, diz a pesquisadora. Para causar esse efeito, o texto frequentemente usa termos exagerados, muitos adjetivos, tons de denúncia, traz apelos e chamados à ação, como “você tem que repassar isso”, “mande para o máximo de pessoas que puder”. Em uma reação de impulso, basta apertar o botão Enviar, e lá se vai a mentira para amigos, família e grupos de afinidades: mais veloz do que um vírus e, algumas vezes, mais prejudicial. Por isso, como explica Januária, o primeiro desafio da escola é ensinar a seus alunos as diferenças marcantes entre o texto jornalístico e o texto ficcional – que é a classificação das notícias falsas. Mais recentemente, um novo fenômeno veio somar à divulgação de notícias falsas: a sua transformação em um produto. Robôs – programas que simulam perfis reais de pessoas nas redes sociais – invadiram as redes sociais replicando notícias enganosas com determinados objetivos. “Há um movimento mais amplo hoje que é o da desinformação intencional, que está ligado ao descrédito das ciências”, diz Januária. Turbinadas por teorias conspiratórias, enxurradas de fake news atacam as instituições que produzem informação de credibilidade, como o jornalismo, a universidade, os cientistas e os sistemas eleitorais. É o caso das notícias que tentam dar asas à inconcebível teoria de uma Terra plana ou a que atribuiu a covid-19 a uma ação maquiavélica do governo chinês. Até mesmo o avanço tecnológico cria condições para uma nova geração de mentiras: a chamada deep fake news. Utilizando aplicativos de fácil acesso, pessoas com algum domínio de ferramentas digitais podem inserir em um vídeo qualquer fala de outra pessoa, com a mesma voz e simulando os movimentos da sua boca. Da mesma forma, pode-se distorcer fotos antigas, como se fossem recentes, e inserir informações falsas que gerem credibilidade, como dados e números, conferindo-lhe aspecto de verdade. “Pela maneira como são desenvolvidas essas fake news, fica mesmo difícil não embarcar”, explica Januária. A crescente complexidade do tema obriga a escola a dedicar mais tempo para utilizar melhores estratégias para trabalhar com os alunos. O Colégio Rio Branco, em São Paulo, dá atenção especial ao assunto. No dia 1 º de abril, tradicional Dia da Mentira e já durante o período de isolamento social, os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental e de todo o Ensino Médio participaram da oficina virtual Mídia Digital, pra quê?, que debateu as fake news no contexto da pandemia. O encontro abordou a responsabilidade do uso das mídias digitais, a checagem de informação, o cuidado no compartilhamento e o combate à desinformação, e os alunos participaram de um desafio de checagem de notícias falsas e verdadeiras.

Para a pesquisadora Januária Alves, o trabalho pode começar na Educação Infantil, pois até as crianças já têm clara noção do que são notícias falsas. Em uma formação recente para a Secretaria Municipal de Educação, uma professora narrou sua experiência com o trabalho, durante uma roda de conversa. Perguntada se sabiam o que eram fake news, uma criança imediatamente levantou a mão e disse: “é notícia mentirosa e o celular da minha mãe está cheio delas!”. O exemplo mostra a importância de envolver a família nas discussões. A experiência pessoal já nos mostra, por exemplo, que grupos familiares são terreno fértil para a difusão de fake news. Além disso, as implicações da propagação de fake news já são enquadradas criminalmente, em um cerco que deve se apertar, com o avanço da legislação. Ao mesmo tempo, é preciso trabalhar com os professores de todas as áreas e a própria direção escolar. “Não se trata de escolher uma ou outra área para este trabalho, todos são responsáveis por formar para a cidadania”, diz Januária. Assim, cada vez mais, dotar esses futuros cidadãos de ferramentas contra as notícias falsas é essencial. “As fake news representam um ataque à democracia”, finaliza.

 

Ação internacional

 

Sim, um ataque à democracia. É por isso que a Organização Nações Unidas (ONU) vem se mobilizando internacionalmente, com iniciativas como a plataforma Verified, cujo objetivo é conter a propagação de notícias falsas sobre a covid-19 (http://shareverified.com). “Não podemos ceder nossos espaços virtuais a quem trafega mentiras, medo e ódio”, afirmou em seu lançamento o secretário-geral da ONU, António Guterres. “A desinformação se espalha on-line, em aplicativos de mensagens e de pessoa para pessoa. Seus criadores usam métodos de produção e distribuição mais experientes. Para combater isso, cientistas e instituições como as Nações Unidas precisam alcançar pessoas com informações precisas nas quais possam confiar”, disse. Assim como este, diversos sites de checagem rápida de informação, disponíveis em vários idiomas, estão sendo produzidos em parceria entre a mídia jornalística, organismos sociais e grandes empresas de telecomunicação. É o caso brasileiro da Agência Lupa, cujo foco é a caça às fake news, e mesmo de diversos grupos independentes que vêm se formando nas redes sociais. Nos últimos anos, a Unesco, agência da ONU voltada à educação, à ciência e à cultura, produz pesquisas e livros sobre o tema, em uma área denominada Alfabetização Midiática e Informacional (ou Media Literacy, em inglês). Em maio, a Rede Internacional de Escolas Associadas da Unesco, em Paris, promoveu um webinar com especialistas de diversas partes do mundo, envolvendo jovens ativistas e educadores, para discutir caminhos para fazer frente à propagação das notícias falsas. Para os especialistas participantes, o papel da educação é central, mas não deve se restringir ao campo da linguagem. Para o pesquisador Joseph Kahne, da Universidade da Califórnia, é preciso formar pessoas mais solidárias e empáticas. “Nós temos de dar às crianças oportunidades de prática, ajudando os outros, trabalhando com o mundo real. Todos temos responsabilidade sobre a desinformação”, defende. Nos últimos anos, a Unesco, agência da ONU voltada à educação, à ciência e à cultura, produz pesquisas e livros sobre o tema, em uma área denominada Alfabetização Midiática e Informacional (ou Media Literacy, em inglês). Em maio, a Rede Internacional de Escolas Associadas da Unesco, em Paris, promoveu um webinar com especialistas de diversas partes do mundo, envolvendo jovens ativistas e educadores, para discutir caminhos para fazer frente à propagação das notícias falsas. Para os especialistas participantes, o papel da educação é central, mas não deve se restringir ao campo da linguagem. Para o pesquisador Joseph Kahne, da Universidade da Califórnia, é preciso formar pessoas mais solidárias e empáticas. “Nós temos de dar às crianças oportunidades de prática, ajudando os outros, trabalhando com o mundo real. Todos temos responsabilidade sobre a desinformação”, defende. Da mesma forma, os sistemas educativos devem priorizar a educação científica, já que a própria ciência está sob ataque. Para a pesquisadora italiana, Stefania Gianini, deve se mostrar que a ciência é dinâmica e não produz verdades absolutas, mas baseia-se em métodos verificáveis. “É preciso falar sobre a origem da informação, a metodologia, sobre o que pode ser verificado, mostrando que ciência não é um edifício de verdades, mas tem métodos que todos devem conhecer”, lembrou. Quanto mais se torna complexo o tema, mais importante é investir na formação para diversificar estratégias e tornar o trabalho interdisciplinar. “É preciso formar um leitor crítico e analítico, com repertório, que consiga desconfiar e perguntar: quem se beneficiaria com isso?”, defende Januária Alves. Até porque as notícias falsas conversam entre si, espelham ações globais, como é o caso dos discursos de ódio. Para isso, é tão importante o professor de História, Geografia quanto o de Português, o de Ciências e o de Inglês. “Temos de avançar, e realmente fazer com que o aluno tenha repertório para ler o texto, entender o subtexto e analisar o contexto”, explica a pesquisadora. No final do dia, a melhor vacina contra as notícias falsas continua sendo a educação de qualidade.

 

PARA SABER MAIS:

Agência Lupa. Disponível em: mod.lk/alupa. Acesso em: 10 ago. 2020. AIDAR, F.; ALVES, J.C. Como não ser enganado pelas fake news. São Paulo: Moderna, 2019

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A escola e a cultura juvenil

A escola e a cultura juvenil

Miguel thompson

Miguel thompson

Reformas curriculares: adequando a educação ao novo mundo

Texto Miguel Thompson

A escola contemporânea se organizou em disciplinas escolares, herdeiras do movimento Enciclopedista do século XVIII, baseado na organização do conhecimento acadêmico. De certa forma, os currículos escolares domesticaram a cultura com programas hierarquizados e conceitos rigidamente interligados a serem transmitidos aos alunos. Assim, conhecimentos de fora do meio acadêmico, obtidos pela experiência dos jovens com seu entorno e com forte tradição popular, foram abandonados pelo processo de ensino. Esse discurso hermético, de definições, conceitos e modelos, além de não dialogar com os educandos, não tem sido capaz de explicar o mundo para os jovens: um conhecimento fechado apenas à escola e para a escola. Preocupados com a progressiva distância da educação escolar com o mundo, alguns países promovem reformas curriculares para transformar a educação em um processo mais significativo para os jovens e efetivo para a resolução de problemas, em um mundo dinâmico e complexo. Os currículos tradicionais, ainda sob forte influência da Revolução Industrial e da verticalização conceitual, vêm sendo modificados, deslocando a centralidade disciplinar para o aprendizado, a compreensão e a resolução de problemas. Com base nas ideias de Kant, utilizadas por Piaget para o desenvolvimento da sua teoria do conhecimento, não se pretende mais um conhecimento em que os estudantes sejam uma tábula rasa, meros repositórios de informações. As vivências dos jovens, suas experiências e as rápidas transformações do mundo contemporâneo passaram a ser vetores importantes para a elaboração de políticas públicas educacionais. O dinamismo do mundo atual e a velocidade com que novos conhecimentos são sistematizados, nem sempre associados ao meio acadêmico, exigem que os currículos escolares passem a ser mais porosos ao mundo e interativos com os conhecimentos prévios dos jovens.  Por outro lado, saber individualmente o que pensam os estudantes sobre cada tópico é pouco factível em salas de aula lotadas. Como abarcar o conhecimento dos jovens, interagir com os conteúdos escolares e produzir sínteses efetivas para o desenvolvimento estudantil? Abordar os processos socioculturais contribui decisivamente para construir uma escola mais contextualizada e significativa. A cultura jovem deve ser parte integrante do planejamento escolar, como forma de trazer o imaginário dos jovens e aproximá-los dos saberes escolares, enriquecendo as aulas com novos conhecimentos vindos deles.

 

Puberdade e Adolescência

 

Partindo de uma premissa construtivista, é importante entender o desenvolvimento dos jovens. A puberdade é o processo de transformação fisiológica, anatômica e psíquica que marca a passagem da infância para a juventude. É um fenômeno comum para todos os seres humanos, embora seja diferente para cada sexo biológico. Já a adolescência é um fenômeno histórico, sociocultural, localizado no tempo e no espaço. Ao contrário dos estereótipos sobre a juventude, pode-se afirmar que existem várias adolescências, determinadas por diversidade de grupos, atitudes, comportamentos, gostos, valores, filosofias de vida, níveis econômicos e regiões.  Nem sempre se considerou a adolescência como uma fase do ciclo de vida. A Organização das Nações Unidas (ONU) delimita a adolescência à faixa que vai de 10 a 20 anos. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) descreve essa fase entre os 12 e os 18 anos. Mudanças culturais e socioeconômicas vêm estendendo essa faixa até cerca de 30 anos, seja pela diminuição do número de filhos na família, ampliando o foco de atenção dos pais aos filhos, seja por questões econômicas, que obrigam o jovem adulto a viver com a família original por mais tempo. De qualquer forma, o status de adolescência como uma fase formal do ciclo de vida foi definido no início do século XX, a partir dos estudos do psicólogo Stanley Hall.

 

A adolescência ao longo da história

 

A adolescência sempre foi uma preocupação da sociedade, apenas não era considerada uma fase diferenciada, como a infância e a vida adulta. Na Grécia Antiga, a imagem mitológica de Eros era a representação ora de uma criança na forma de anjo, ora de um adolescente, descrito como mimado e irascível, a distribuir sentimentos passionais para aqueles que flechava. Em muitos relatos, é possível identificar as relações conflituosas entre Eros e outros deuses. Nada diferente do estereótipo que temos dos adolescentes de hoje. Havia uma preocupação também do contato entre jovens e adultos. A famosa condenação de Sócrates foi decorrente da acusação de o filósofo degenerar os mais jovens com suas ideias e comportamento. Muitas são as culturas e religiões que possuem cerimônias ou rituais que demarcam a passagem da infância para a juventude e do jovem para a vida adulta. Na Idade Média, o sistema feudal exigia que as crianças trabalhassem assim que desenvolvessem autonomia, sendo tratadas como adultos em miniatura, sem que houvesse uma ideia de juventude.  Shakespeare foi um dos primeiros escritores a descrever uma forte reação dos jovens contra as tradições dos adultos em Romeu e Julieta. Romeu tinha 17 anos, e Julieta, 13.  O movimento Romântico (séc. XVIII-XIX) apresenta características típicas dos jovens adolescentes, como o subjetivismo, a idealização, o sentimentalismo, o egocentrismo (culto ao eu interior), o escape psicológico (nostalgia da infância e a idealização de um passado medieval), a necessidade de liberdade de criação, o pessimismo (protagonistas com profunda tristeza, angústia, solidão, inquietação, desespero). O romance Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, foi proibido e acusado de incentivar o suicídio entre os jovens – preocupação parecida com a recente série televisiva 13 reasons why (13 razões porquê) e com o suposto “Jogo da Baleia Azul”. A ideia de indivíduo passa a ser cada vez mais fomentada pela associação do Romantismo com a filosofia liberal. Nesse período, surge o Romance de formação, em que se descrevem as agruras do processo de desenvolvimento da juventude, com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Obras como As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, e Harry Potter, de J. K. Rowling, são herdeiros dessa tradição. A cultura jovem deve ser parte do planejamento, como forma de trazer o imaginário dos jovens e aproximá-los dos saberes escolares. O século XIX é repleto de literaturas focadas na adolescência. Os irmãos Grimm pesquisaram contos com adolescentes como protagonistas, em rituais de passagem para a vida adulta. A partir da tradição oral, compilaram as histórias de Branca de Neve, Rapunzel e Cinderela. Uma versão moderna é a empoderada Elsa, de Frozen, muito mais adequada para as adolescentes feministas atuais.  No final do século XIX, uma icônica referência foi a do poeta Arthur Rimbaud, que produziu toda sua poesia enquanto era adolescente, abandonando a produção literária aos 20 anos. Sua foto adolescente é uma das mais conhecidas representações de juventude do Ocidente. Nessa época, inicia-se o ideal de juventude como desejo da sociedade. Oscar Wilde escreveu O Retrato de Dorian Gray, em 1890, representando um jovem que jamais envelhecia. O século XX foi uma grande ode à adolescência. Com o processo de urbanização e a revolução industrial acelerada no século XIX foi preciso intensificar a formação dos jovens para o mundo do trabalho, massificando a educação e os agrupando em faixas etárias, como nas linhas de montagem. Por outro lado, milhares de jovens morreram na Primeira Guerra Mundial, ampliando nas famílias o desejo de proteger e de dar mais atenção a seus filhos. A urbanização, as aglomerações urbanas, a locomoção mais rápida com o advento do automóvel e outras mudanças culturais aproximaram os jovens, que passaram a construir um rápido processo de imaginário coletivo. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o advento da bomba atômica, uma revolta contra o mundo adulto passa a tomar conta de parte da população jovem. James Dean pode ser visto como uma espécie de Rimbaud/Dorian Gray, sendo a encarnação dessa “juventude transviada”. O rock’n’roll passa a ser um mantra entre os adolescentes urbanos, vindo dos Estados Unidos, contaminando todo mundo ocidental, com um forte apelo ao consumo, principalmente pela rápida popularização da televisão. Foi possível o desenvolvimento de uma cultura juvenil pelo amplo processo de escolarização dos jovens e pelo retardamento da entrada destes na vida adulta, passando a ter mais tempo para interagir com colegas de mesma idade, sem uma pauta de produtividade. Movimentos culturais como os beatniks e contracultura hippie dos anos 1960 foram o coroamento da centralidade do jovem no mundo contemporâneo. Dos discursos identitários sessentistas vieram o feminismo, o movimento LGBT, a luta antirracista, o movimento ambiental e o ativismo político. Hoje, não é difícil encontrar estudantes que se identificam com alguma dessas causas.   A ideia da adolescência como fase de vida é uma construção que vem se consolidando socialmente em especial nos últimos 200 anos, não como um comportamento único, mas plural, com diferentes grupos identitários que podem se agrupar em tribos urbanas modernas e que se bem compreendidas podem ajudar no planejamento do processo de ensino-aprendizagem, contribuindo para uma passagem menos conflituosa.

 

A cultura jovem no Brasil

 

Conhecer a cultura jovem, identificar entre os alunos esses grupos culturais e intermediar o conhecimento formal com a cultura de massa é uma boa estratégia para dar maior significado ao conhecimento em qualquer disciplina. Para muitos conteúdos, seja pela característica ou pelo contexto dos períodos em que os conhecimentos foram formalizados, conectar a cultura juvenil ao conteúdo escolar pode despertar a curiosidade e o engajamento no processo individual e coletivo de aprendizado. Em 2018, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em uma ação extremamente arrojada, inseriu em sua lista de preparação para o vestibular o álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC, grupo de rap com ampla penetração entre os jovens. Mais do que estudar para o vestibular, a Unicamp aponta que a cultura jovem é um conhecimento a ser considerado pela escola. São muitos os diferentes campos da cultura pop que podemos conhecer e utilizar nos planos de aula. Veja alguns exemplos:

O rock

Há uma farta produção bibliográfica e cinematográfica sobre o rock no Brasil, suas origens e penetração como força cultural. Uma boa dica é assistir ao filme biográfico de Erasmo Carlos, Minha Fama de Mau. O filme aborda principalmente a formação e a consolidação da cultura juvenil no Brasil entre 1950 e 1960. O rápido processo de urbanização e estratificação social do período, a expansão da classe operária e da classe média. Essa base de mudanças abriu espaço para o desenvolvimento de uma cultura de consumo.

O sertanejo

A migração da música caipira, profundamente enraizada no mundo rural, para o meio urbano, fundindo-se com o iê-iê-iê da Jovem Guarda, deu origem à música sertaneja. Há muitas variações do ritmo, como o sertanejo universitário, voltado para um público jovem e caracterizado pelo afastamento do cenário e dos valores da tradição rural. As temáticas exploram a importância do dinheiro, o universo das baladas, as conquistas amorosas, os namoros rápidos e a “sofrência”.

O funk no brasil 

O funk brasileiro vive há quase duas décadas entre extremos de aceitação e repúdio. As músicas são executadas milhões de vezes no Youtube e no Spotify. O ritmo surgiu nos anos 1960 como expressão da cultura negra norte-americana e chegou ao Brasil nos anos 1970, principalmente no Rio de Janeiro e em menor expressão em São Paulo. Executado em bailes comandados por DJs, rapidamente foi assumindo uma cultura particular, com seus MCs. Um dos principais influenciadores do funk no Brasil foi o antropólogo Hermano Vianna, como objeto de pesquisa acadêmica. Aqui, a Academia foi em busca da cultura popular.

O geek e o nerd

A Comic Con e a Campus Party são dois dos eventos mais importantes da cultura geek e nerd. Só no Brasil, cerca de 300 mil jovens visitam a Comic Con, onde é exposto o que se tem de mais relevante na cultura de quadrinhos, cinema, televisão e games. Acompanhar as notícias ou participar desses eventos nos dá um bom upgrade sobre essa cultura. Há uma intensa ressignificação desses jovens consumidores. A partir de seriados de televisão como The Big Bang Teory e Silicon Valley, bem como a exposição constante de ícones da tecnologia como Steve Jobs e Bill Gates, muitos jovens passaram a apreciar essa cultura; o antigo CDF tornou-se cool, não mais o típico jovem a sofrer bullying. Passa a ser um estilo de vida construído a partir do consumo e das novas concepções de juventude e de trabalhador ideal para o mundo da quarta revolução industrial. Uma junção de cultura do entretenimento e da tecnologia passa a definir identidades juvenis.  O jovem de hoje valoriza a diversidade de ideias e culturas e busca mais participação em atividades sociais e cívicas de seu entorno. A escola precisa representar esse espaço de múltiplos diálogos. 

O ativista

Os anos 60 foram ricos em manifestações políticas da juventude. Muitas dessas causas se expressam hoje nos jovens do Ensino Básico. Entender esses movimentos ajuda a preparar nossos planejamentos da maneira mais significativa para os estudantes. Movimentos como o de junho de 2013 tiveram origem no protesto de jovens contra o aumento de passagem de ônibus urbanos. Em poucas semanas o país foi tomado pelo movimento, que ampliou suas pautas e tornou-se mais complexo. Em uma linha similar de movimentação de jovens, menos politizada, mas também de grande importância, podemos colocar os rolezinhos que ocorreram no final de 2013 e em parte de 2014, quando jovens de classe média baixa se espalharam por todo Brasil, passeando em grupos em vários shoppings a que comumente não tinham acesso e nem eram bem-vindos. As ocupações das escolas públicas foram um misto de rolezinhos com as jornadas de junho de 2013, pelo ato de ocupação e pela ação política. O processo de organização dos protestos gerou uma dinâmica de organização coletiva que forjou novas relações sociais, tanto entre os estudantes, como entre eles e os professores e as direções das escolas. A ideia de grêmios escolares geridos horizontalmente, sem relações hierárquicas, foi um dos pontos-chave do movimento. Em pouco tempo escolas de São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná e Espírito Santo foram ocupadas. Nesses movimentos, as meninas tiveram um papel preponderante. Paralelamente às ocupações estudantis, vimos as jovens brasileiras se apropriarem de um debate político e feminista com camisetas com os dizeres “Lute como uma garota” pelas escolas. É importante destacar os recentes movimentos feministas como o #MeToo dos Estados Unidos que fala contra o abuso masculino e se posiciona a favor dos direitos das mulheres.

 

Em síntese

 

A nova geração das múltiplas culturas tem um comportamento global, com grande afinidade à diversidade, em que muitos participam de atividades cívicas. São colaboradores naturais, prezando a liberdade de escolha e tendem à personalização das coisas, uma geração que sai de um comportamento passivo frente à televisão para uma interação constante com as mídias digitais. Ao contrário das gerações passadas, querem se divertir, seja na escola, seja em movimentos cívicos ou no trabalho, o que não retira deles a responsabilidade pela entrega com qualidade. Vivem em um mundo veloz e aceitam a inovação como elemento natural da vida. O modelo fabril do século XX vai sendo substituído pelo ateliê do artesão, o estúdio do artista, a oficina de consertos ou, por que não, em um grande salão de festas. 

Para saber mais

  • Campos, A. J. M.; Medeiros, J.; Ribeiro, M. M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016. 
  • Carr, N. A geração superficial: o que a Internet está fazendo com nossos cérebros. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
  • Pinheiro-Machado, R. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.
  • Prensky, M. Enseñar a nativos digitales. UE: Ediciones SM, 2011.
  • Rocha, C. Popular e perseguido, funk se transformou no som que faz o Brasil dançar. Disponível em: nexojornal.com.br. Acesso em: 6 jan. 2020. 
  • Santos, P. M. dos. O Nerd virou cool: consumo, estilo de vida e identidade de uma cultura jovem em ascensão. Dissertação de Mestrado: Universidade Federal Fluminense, 2014.
  • Schoen-Ferreira, T. H.; Aznar-Farias, M.; Silvares, E. F. de M. Adolescência através dos séculos. Psicologia: Teoria e Pesquisa. abr.-jun. 2010, v. 26, n.2, pp. 227-234.
  • Tapscott, D. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a Internet estão mudando tudo, das empresas aos governos. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010.
  • Zimmermann, M. Erasmo Carlos e sua fama de mau: o rock e a cultura juvenil no Brasil (1950-60). Disponível em: mod.lk/ed18pano. Acesso em: 10 fev. 2020.

Miguel thompson é Doutor e Mestre pelo Instituto Oceanográfico da USP. Autor de livros didáticos e de difusão científica, foi professor do Ensino Básico por 25 anos. Atua como consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é presidente do conselho editorial da Revista Educação e diretor acadêmico da Fundação Santillana. — De acordo com a Lei 9.610/98 é proibida a reprodução total ou parcial desta website, em qualquer meio de comunicação, sem prévia autorização.

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Pesquisa TIC Educação 2018 destaca a importância do educador como mediador para uso de tecnologias, mas falta formação estruturada para isso.

Texto Portal Porvir

Aprender sozinho é o principal caminho encontrado pelos alunos na hora de usar tecnologia. Apenas para 44% dos estudantes de escolas urbanas, os professores são considerados fonte de informação sobre o tema. Antes de recorrer ao apoio dos educadores, eles trocam informações com amigos, parentes ou até mesmo buscam vídeos e tutoriais disponíveis na internet. Os dados são da TIC Educação 2018, divulgada em julho pelo CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), por meio do Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação) do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR). Para investigar o acesso, o uso e a apropriação das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) nas escolas públicas e particulares brasileiras de ensino fundamental e médio, a pesquisa entrevistou presencialmente, em escolas urbanas, 11.142 alunos de 5º e 9º ano do ensino fundamental e 2º ano do ensino médio, 1.807 professores de Língua Portuguesa, de Matemática e que lecionam múltiplas disciplinas (anos iniciais do ensino fundamental), 906 coordenadores pedagógicos e 979 diretores. Nas escolas rurais, foram ouvidos 1.433 diretores ou responsáveis pela escola. “Mesmo não sendo a principal referência para os alunos (na busca por conhecimento em tecnologia), os professores são mediadores para o uso das tecnologias”, disse Daniela Costa, coordenadora da pesquisa TIC Educação. Segundo ela, os educadores já são reconhecidos pela maior parte dos alunos de escolas urbanas públicas e particulares como validadores do conteúdo encontrado na internet, seja na hora de comparar informações em sites diferentes, para indicar sites ou produzir trabalhos. Diante dos riscos à privacidade e de perigos on-line, assumir papel de mediador não significa saber menos que o estudante. Para a consultora Maria da Graça Moreira da Silva, docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultora do Instituto Natura, os educadores devem trazer uma intenção pedagógica clara para fazer o uso desses recursos digitais. “Os alunos normalmente sabem usar as tecnologias com os seus colegas para jogar, conversar ou acessar WhatsApp e Instagram, mas isso não significa que eles sabem aprender por meio de tecnologias”, disse a consultora.

 

Formação de professores em tecnologia

 

Quando o assunto é tecnologia, a tendência de aprender sozinho também ganha força entre os educadores. De acordo com a pesquisa, 90% dos professores afirmaram que aprenderam sozinhos a usar as tecnologias. Nos últimos três meses anteriores à realização da pesquisa, 76% dos professores participaram de cursos sobre tecnologia, especialmente sobre como melhorar sua prática e ajudar alunos a fazer uso seguro delas. Daniela Costa, do NIC.Br, ressaltou, no entanto, que ainda faltam maneiras mais estruturadas para formar professores, seja nas escolas públicas ou particulares. Na formação inicial, o contato de tecnologia acontece de forma desigual dependendo da área de conhecimento do professor. Enquanto 58% dos professores de Matemática disseram ter cursado disciplina específica para tecnologia, apenas 42% de Língua Portuguesa dizem ter passado pela mesma experiência. “Existe uma tendência de a tecnologia estar mais presente nas áreas de ciências exatas, mas eu diria que as políticas públicas enfrentam um grande desafio, porque a tecnologia é aliada em todos os campos do conhecimento. Não obstante as escolas já estejam conectadas e alunos em posse de tecnologias, os professores ainda trazem essa falha na formação”, disse Alexandre Barbosa. A TIC Educação revela que, em 2018, 64% dos professores até 30 anos tiveram a oportunidade de participar, durante a graduação, de cursos, debates e palestras sobre o uso de tecnologias e aprendizagem promovidos pela faculdade, assim como 59% realizaram projetos e atividades para o seu curso sobre o tema. Por mais que tenham buscado aprimorar seus conhecimentos na internet ou com colegas, apenas 30% dos professores realizaram algum curso de formação continuada. No momento da realização da entrevista 30% das escolas particulares participaram de alguma iniciativa do tipo, enquanto que, entre as públicas, esse número era menor: 21%. “O papel do gestor escolar é muito importante. Não basta ter infraestrutura e vontade do professor se os responsáveis pelos programas de formação não estimularem e criarem as condições necessárias para que esse processo de formação continuada se estabeleça”, afirmou Leila Iannone, coordenadora da pesquisa.

 

Cidadania digital e uso seguro dos dados

Além de apoiar os alunos na apropriação das ferramentas, a formação também é fundamental no que diz respeito ao uso seguro e consciente da tecnologia. Entre os educadores, 38% afirmam terem apoiado algum aluno a enfrentar situações como bullying, discriminação, assédio ou disseminação de imagens sem consentimento na internet. A proteção de dados também é um assunto que ganha destaque na comunidade escolar. Entre os coordenadores pedagógicos entrevistados, 59% deles afirmaram que buscaram cursos, palestras e fontes de informação sobre a disseminação de dados dos alunos e da escola na internet. Quando o assunto é segurança, os alunos reconhecem que recorreram aos professores para buscar auxílio sobre uso seguro da internet (48%) e receberam orientações para comparar informações em diferentes sites (51%).

Conectividade

Assim como nos levantamentos anteriores, quase que a totalidade das escolas urbanas (98%) conta com um computador conectado à internet. Em 2018, apenas 12% das escolas públicas tinham uma conexão de banda larga de 11 Mbps ou mais rápida, enquanto que esse cenário já era percebido em 42% das escolas privadas. O acesso ao wi-fi também continua baixo entre os estudantes. Apenas 16% dos alunos de escolas urbanas afirmaram ter permissão para uso da rede sem fio.

 

Para saber mais

TIC Educação 2018: mod.lk/ticedu18 Especial

Tecnologia na Educação (Porvir): mod.lk/porvirtc

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A hora e a vez do steam na sala de aula

A hora e a vez do steam na sala de aula

Débora Garofalo - Colunista

Débora Garofalo - Colunista

Projetos inovadores e em grupo vão além de investimentos: são uma mudança de atitude.

Texto Débora Garofalo

A metodologia steam (do inglês Science, Technology, Engineering, Arts e Mathematics) foi criada nos Estados Unidos na década de 90, a partir de pesquisas e avaliações que registravam um desinteresse dos alunos pelas ciências exatas. A metodologia ou abordagem pedagógica, baseada em projetos, integra áreas e tem por objetivo formar pessoas com diversos conhecimentos e diferentes habilidades. Por isso, casa perfeitamente com as exigências da Base Nacional Comum Curricular (bncc), ao desenvolver competências e habilidades socioemocionais que preparam os alunos para os desafios futuros. As atividades guiadas na metodologia steam permitem resolver problemas ao conectar ideias que parecem desconectadas, ajudando a “pensar fora da caixa”, beneficiando o aprendizado interdisciplinar e trazendo os estudantes para o centro do processo cognitivo. O professor atua como responsável pela mediação e apoio às equipes, exercendo a colaboração para que a turma aprenda durante todo o processo de forma integrada e coletiva. A adoção do steam prevê um conjunto de conhecimentos técnicos essenciais para despertar a criatividade, a empatia, o humanismo e o desenvolvimento de tendências como o pensamento computacional e a cultura maker. Nas escolas brasileiras, o steam tem potencial transformador ao aumentar o protagonismo do aluno, incentivar a inovação e a colaboração, fortalecendo o processo de ensino e aprendizado. Segundo os dados do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (pisa), 2015, entre os 70 participantes, o Brasil é o 63o colocado em Ciências e o 66o em Matemática, sendo emergencial que sejam revistos o processo de aprendizagem e as práticas docentes para reverter essa situação. A chave para o sucesso de uma educação inovadora é criar um ambiente que permita a participação dos atores envolvidos, para que conheçam e que contribuam, dando-lhes a sensação de pertencimento e autoria. Não existe um modelo pronto para aplicar e a mudança de atitude deve partir de todos para alcançar uma aprendizagem significativa e envolvente, quebrando velhos paradigmas e ambientes pouco propícios.

As diferenças entre steam e stem

Além da diferença na nomenclatura — pela inclusão de Arte, que tem a concepção de melhorar o desempenho escolar, o senso estético e crítico, tornando a lógica matemática mais humana —, podemos dizer que o termo stem trata de como fazer e o steam incentiva a descoberta do porquê realizar em cinco etapas: 1 Investigar; 2 Descobrir; 3 Conectar; 4 Criar; 5 Refletir.

Ambas metodologias permitem aos alunos vivenciar e experienciar o pensamento científico e crítico de maneira interpretativa e reflexiva, por meio da ludicidade e ou projetos interdisciplinares que podem ser aplicados desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, em todas áreas do conhecimento.

A importância do steam no contexto escolar

O steam, em consonância com a bncc, tem foco no desenvolvimento de habilidades essenciais ao século xxi. As atividades baseadas na metodologia devem ser planejadas para que os alunos se sintam desafiados e trabalhem de forma colaborativa, compreendendo o seu projeto e buscando alcançar conhecimentos e habilidades de forma interativa e autônoma. Dessa forma, o steam dialoga e facilita o desenvolvimento das 10 competências da bncc. A abordagem steam favorece a aprendizagem por experimentação por meio de metodologias ativas, em que o aluno tem a oportunidade de lidar com situações e problemas de forma criativa, sem perder o foco investigativo. O ambiente é fundamental e deve ser inspirador e facilitador, porém, não é suficiente para proporcionar a aprendizagem. O professor deve estabelecer objetivos claros e integrar as áreas para que a aprendizagem ocorra. É necessário também que os projetos contemplem a educação ambiental pautada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a fim desenvolver colaboração, reflexão, ética e empatia, trazendo esses pontos para o centro da discussão. Os ODS são uma coleção de 17 metas globais estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. O steam permite viabilizar, por exemplo, projetos a baixo custo com materiais alternativos, como sucata, de maneira sustentável e dentro da sala de aula.

Aplicando o steam na prática

Por ser baseada na aprendizagem criativa e em tendências educacionais como programação, robótica, inteligência artificial etc., a metodologia steam pressupõe a investigação científica, o trabalho por projetos e o movimento maker. Assim, a adoção do modelo deve partir inicialmente da intencionalidade do professor, mas deve-se ouvir os estudantes e sistematizar essa escuta para aplicar o steam nas aulas.

  • 01 – Valorize o espaço de aprendizagem. O espaço de aprendizagem é o lugar para aceitar o desconhecido, reconhecer o erro e trabalhar colaborativamente. Deve ser regulado por dois valores: segurança e respeito. Os alunos e professores devem priorizar uma convivência harmoniosa e produtiva, cuidando uns dos outros, do espaço e de si mesmo. Ao saber qual a atitude necessária para o trabalho no ambiente, as intervenções docentes fazem sentido para o aluno. O professor deve ser um mediador que permita aos alunos aprender pela experiência, prezando a relação humana e a horizontalidade. A hierarquia se dá por reconhecimento e não por autoridade. Busca-se a autonomia a partir da empatia, criando vínculo com os alunos, reconhecendo o contexto de cada um, descobrindo o que tem sentido e significado para eles. Ao ampliar seu horizonte de conhecimento, o estudante ganha autoconfiança e segurança para ousar e propor novas soluções.
  • 02 – Transforme conceitos em aulas práticas. O professor deve olhar para o currículo e possibilitar aos alunos, por meio da resolução de problemas, trabalhar de forma prática, permitindo que testem suas hipóteses com ações mão-na-massa (learning by doing), unindo os conceitos das diversas áreas do conhecimento para resolver o desafio proposto.
  • 03 – Crie oficinas. Para iniciar essa abordagem em sala de aula, realize uma oficina com a turma dividida em grupos. Leve um problema relacionado ao conteúdo trabalhado e proponha que viabilizem a solução de maneira prática. Vale manusear materiais simples de sucata e fazer questões norteadoras e provocativas para que os alunos se envolvam nas atividades.
  • 04 – Problematize. As perguntas são essenciais para avançar nas hipóteses e para o docente mediar a aprendizagem. Esse momento pode gerar debates e intervenções para instigar os grupos a encontrarem caminhos diversos. O desafio tem de ser interessante, sem respostas prontas, permitindo espaço para imaginação e criatividade para produzir, testar e refazer. Ao final, sistematize os conhecimentos para que os alunos se sintam motivados a compartilhar aprendizados com um debate ou apresentação.
  • 05 – Planejamento. Estabeleça roteiros e parcerias com a turma já que a proposta é realizar um projeto integrado, com etapas definidas, pesquisa e produção e testes de aplicação.

  • 06 – Foque na integração de conhecimentos e traga problemas reais. Na hora da prática, é essencial equilibrar conhecimentos das cincos áreas. Defina o contexto e parta de desafios reais para que os alunos possam atuar na sociedade ou se envolverem com problemas do entorno da escola, aplicando conceitos ao propor soluções.
  • 07 – Trabalhe com habilidades socioemocionais. O steam é um propulsor para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais por permitir que atividades sejam desenvolvidas em grupos, em que os papéis podem e devem ser revisados. As atividades devem ter objetivos claros e abordar novas maneiras de articular o currículo proposto para desenvolver competências como empatia, colaboração e criatividade.

Atitudes que transformam

Convidamos Andrea Barreto, professora da rede municipal do Rio de Janeiro e coordenadora do Núcleo do Rio de Janeiro da Conectando Saberes, para contar duas experiências práticas que mostram como a metodologia steam pode ressignificar de forma simples e coletiva a aprendizagem. 

Steam no Fundamental 1. Certa vez, quando eu lecionava para o 9o ano de uma escola, a professora do 4o ano me procurou com uma preocupação. Os alunos dela perguntavam se a borboleta “nascia da lagarta ou da minhoca”. Pergunta fantástica! Ela esclarecia que era da lagarta, mas um grupo jurava que viu uma “minhoca se transformar em borboleta”. Chegamos à conclusão de que seria ótimo realizar uma experiência com as crianças. Para ajudá-la, coletei algumas lagartas, que se transformariam em casulos, e coloquei, com algumas folhas, em uma caixa de sapatos sem o tampo, que substituí por uma rede de filó. Pedi para ela levar as minhocas com a terra. Orientei-a para não fazer grandes comentários e falar que queria ver se alguma “minhoca” se transformaria em borboleta. Ao mostrar para a turma, um dos meninos falou logo que “aquelas minhocas não eram do tipo certo” e ela pediu que eles trouxessem o tipo certo. Assim foi feito. 

Nos dias seguintes, a turma fazia e anotava as observações e colocavam mais folhas para as lagartas. “Por que mais folhas?” — se perguntavam. “Pode ser qualquer folha?”; “E a minhoca não come?”. Com o incentivo da professora, pesquisas, anotações e compartilhamentos comprovaram que as minhocas não comem terra. Passamos a pesar o pote semanalmente. “Tem mais terra?”; “Não é cocô de minhoca?”. Vejam o quanto está sendo trabalhado: observação, linguagens, matemática, competências socioemocionais como respeito, resiliência, liderança, tudo a partir de um desafio teimoso de um grupo de alunos. 

Um dia, os casulos apareceram e a turma ficou eufórica. Os alunos não paravam de perguntar e fui até a sala para responder algumas perguntas. “Está tudo morto, professora?”; “Acabou”? A essa altura, a escola toda sabia do nosso projeto. Alguns dias depois, as borboletas apareceram. Soltamos em uma manhã de risadas, pulos e lágrimas. “Nossas lagartas irão embora!”. No fim, anotaram as conclusões e nós atingimos vários objetivos, entre eles o de vivenciar o steam na prática. 

Steam no Fundamental 2. Em uma turma do 7o ano, os alunos entraram na sala falando sobre o livro Cem dias entre Céu e Mar (Amyr Klink), que a professora de Língua Portuguesa estava lendo com eles. Eu só ouvia: “O cara remou muito!” – dizia um. “Nada, foram as correntes marinhas!” – retrucava outro. Daí se seguiu a discussão sobre o que eram as tais correntes marinhas. Eu tentava começar a minha aula – que seria sobre célula –, mas a turma estava alheia e logo percebi que era melhor seguir a maré e abordar as tais “correntes marinhas”. 

Pedi para tentarem me explicar como se formavam as correntes e anotei no quadro. “São os ventos!”; “É a rotação da Terra!”; “É a Lua!”; “É a inclinação da Terra!” – eles me diziam. Anotei tudo. Dividi a turma em equipes e pedi para cada equipe provar sua teoria. Eles anotaram a hipótese escolhida e foram em busca das respostas. Na aula seguinte, cada equipe apresentou o que tinha coletado e o que ficou na cabeça de todos foi a diferença de temperatura.

Usei animações feitas na internet para explicar a diferença dos movimentos das moléculas na água quente e fria: algo muito pouco palpável e complicado de se explicar. Eles me diziam que na água quente as moléculas se “movimentam mais” que na fria, porém não se convenciam. Lancei o desafio: “Vocês têm certeza do que estão falando? Provem!”

Estimulei que montassem uma experiência para provar a diferença entre o movimento das moléculas. Pedi para trazer o passo a passo por escrito e reunimos o material: água quente e gelada, copos de vidros iguais, anilina azul e vermelha (as cores foram escolhidas por eles). Na aula seguinte, montamos a experiência. Falei para observarem. Eu enchi os copos de água quente e o restante cada equipe fez.

Um copo com água quente e outro com água gelada na mesma quantidade, duas gotas de anilina em cada copo – na água quente, a vermelha e na fria, a azul –, colocadas ao mesmo tempo, e silêncio absoluto na sala. Eles não sabiam se riam ou se falavam ao mesmo tempo. Pedi para cada equipe relatar o que aconteceu. Na água quente, a anilina se misturou rápido. Na fria, não. Mostrei as animações. Conversamos, interagimos e concluímos a experiência. 

Nesses dois casos, percebemos que não foram necessários altos recursos para aplicar o steam. Em ambos, levantou-se perguntas feitas pelos estudantes que poderiam ser respondidas rapidamente pelo professor. Ressignificar o processo é levar em conta que aprender só faz sentido se encantar o aluno. Deixe-os errar e questione com eles o que deu errado. Faça a mediação, mas não deixe que eles parem de perguntar. Se o aluno pergunta, é o momento de ensinar. 

É preciso explorar novas abordagens na educação, mediando o espaço entre o aluno e a informação, de forma participativa, envolvente e interativa, próxima da realidade no processo de construção e reconstrução do seu conhecimento ao trabalhar com as diversas facetas do processo de aprendizagem. Com soluções criativas, é possível reinventar a educação. 

Débora Garofalo  é professora da rede pública de Ensino de São Paulo. Formada em Letras e Pedagogia, mestranda em Educação, colunista de Educação inovadora no blog Redes Moderna e finalista do Prêmio Global Teacher Prize.

Para saber mais

  • Agenda 2030 – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável:
    https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/

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Território educativo: Como se tornar uma escola transformadora?

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Planejamento coletivo e gestão democrática são caminhos de ampliação da escola para a transformação da comunidade.

Já se tornou corriqueiro nos debates sobre educação lembrar que o mundo vem mudando velozmente nas últimas décadas e que este campo social, especialmente no que se refere à sua principal instituição — a escola e o sistema escolar —, precisa se reinventar para a nova realidade. Vamos avançar um pouco mais nessa reflexão.

A revolução tecnológica possibilitou a coordenação eficiente de grande número de fornecedores independentes, demolindo o gigantismo burocrático que dominava a organização interna das empresas, marcadas por fortes hierarquias e departamentalização dos conhecimentos. Na mesma direção, possibilitou a multiplicação de micro, pequenas e médias empresas na indústria, na agricultura e nos serviços, que passaram a se organizar em rede, não mais nas estruturas hierárquicas anteriores. Nos ambientes de trabalho, valoriza-se cada vez menos a alta especialização e cada vez mais a participação e criação.

A produção de conhecimento científico e de bens culturais passou a se organizar também de modo descentralizado, com base em novas e sofisticadas formas de trabalho em equipe e em rede, e a catalisação de oportunidades e recursos.

Estão dadas as condições tecnológicas para que pessoas e coletivos sejam agentes econômicos e sociais produtivos e, mais importante, agentes de mudanças sociais positivas. Para que isso se torne realidade, é urgente um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, que valorize a diversidade ambiental e cultural do país para a superação da sua inaceitável desigualdade econômica. Um projeto dessa natureza permite reconhecer o papel estratégico que as escolas podem desempenhar. Como a principal instituição formadora das novas gerações e produtora de conhecimento, a escola pode catalisar processos e projetos que favoreçam o desenvolvimento local.

Hoje no Brasil, assim como em muitos outros países, a escola é o equipamento público mais bem distribuído pelo território nacional. Tal equipamento possui um corpo multidisciplinar de profissionais, proximidade cotidiana com as famílias e a maior de todas as potências nacionais: as crianças e os jovens. Essas pessoas que, não tendo sido formadas no mundo da repetição, das hierarquias e especializações, não têm nada a desaprender e possuem todas as condições para se desenvolverem como agentes de transformação positiva.

Escola transformadora

A transformação da escola em um centro local de produção de conhecimento e cultura começa pela construção coletiva do seu projeto político pedagógico (PPP). Gestores, professores, colaboradores, estudantes, famílias e agentes da comunidade são convidados a refletir juntos sobre o contexto em que se encontram. Considerando o contexto social, a origem e a cultura das pessoas do lugar, os desafios econômicos, sociais e ambientais e as potências locais, qual o papel que a escola deve desempenhar para que as crianças e jovens daqui tenham condições de se realizar pessoal e profissionalmente?

Ao responder a tal pergunta coletivamente, o projeto pedagógico da escola definirá sua visão, seus valores e sua forma de organização. A partir disso, a cada ano o currículo será desenhado de modo a engajar estudantes e professores em processos de pesquisa e projetos de intervenção que possibilitem a realização do objetivo maior da escola. Partindo do levantamento da história, da paisagem, das expressões e tradições culturais e dos desafios socioambientais, cada instituição define seu plano anual, considerando as potências locais, os objetivos comunitários e os interesses dos estudantes, para o desenvolvimento de projetos coletivos que, ao mesmo tempo e tomam o lugar um território educativo, possibilitam que os estudantes aprendam a manejar e interpretar as informações, criando novas soluções e oportunidades.

A base metodológica da escola transformadora busca garantir o desenvolvimento de quatro habilidades fundamentais para o mundo em constante transformação. A primeira é a empatia: já não é possível realizar o bem comum seguindo estritamente as regras, por isso dependemos cada vez mais da capacidade de compreender as diferentes formas de conexão entre pessoas, seres vivos, coletivos e instituições, e como as mudanças constantes afetam tais conexões para, assim, encontrar as soluções que priorizam o todo. A empatia só pode se desenvolver no coletivo. O primeiro coletivo é a própria escola, na qual os estudantes devem ser convocados a participar da elaboração e da implementação das regras de convivência, da mediação de conflitos e dos cuidados com o outro e com o que é de todos. O segundo coletivo a que o estudante deve se engajar é o da comunidade em que está inserida a escola. É no contexto comunitário que o estudante deve ser participante ativo nos processos de investigação, reflexão e intervenção sempre pautados pelo bem comum.

Neste mundo em constante transformação, as institucionalidades, os departamentos e as hierarquias têm cada vez menos relevância. As pessoas estão frequentemente atuando em grupos diversos, novas equipes se formam em torno de objetivos comuns e depois se dissolvem. Ser capaz de assumir papéis diferentes e complementares em equipes diferentes, ora liderando processos, ora sendo liderado, é condição básica para a realização profissional e social. Chegamos aqui à segunda habilidade a ser desenvolvida na escola transformadora: trabalhar em equipes fluidas, com pessoas de competências, culturas e interesses diversos, construindo projetos conjuntos.

Cada vez mais, há uma urgência pela atitude. É um momento histórico em que não há tempo para soluções que colocam em risco a própria existência de futuro. O imediatismo e as emergências exigem indivíduos com uma atitude ao mesmo tempo prudente e criativa, que sejam capazes de formular novas soluções para problemas socioambientais urgentes. Soluções que criadas com base no domínio das diferentes linguagens, ciências e saberes, mas que sejam capazes de reinventá-las. A criatividade é, portanto, outra habilidade a ser desenvolvida.

A síntese de tudo isso pode ser o tão falado protagonismo do estudante. Esse pode ser um termo que expresse o movimento de o estudante se sensibilizar em relação a alguma questão, engajar outras pessoas no processo de criar ideias para enfrentá-la e colocar tais ideias em prática. O estudante transforma seu meio ao mesmo tempo que se transforma.

Território educativo

A escola que forma indivíduos capazes de se reconhecer como agentes de mudança e que conhecem sua potência para melhorar o mundo, catalisa processos que transformam seus contextos em territórios orientados para o pleno desenvolvimento de todos.

quando a escola se reconhece como agente da comunidade, transforma seu currículo para atender aos problemas locais.

Quando a escola mobiliza sua equipe e seus estudantes para investigar o lugar o em que está e os convida a pensar como o ambiente pode ser melhorado, invariavelmente induz a conhecer outros agentes do território que também têm potencial para transformá-lo e estão disponíveis para isso. Normalmente há em um mesmo território, outros estabelecimentos do sistema educacional, creches ou escolas, voltadas para outros níveis de ensino ou pertencentes a outras redes de ensino. Em alguns casos, há também instituições de nível superior. É comum que a maior parte de crianças de uma determinada creche siga para a mesma escola da Educação Infantil, dessa para a de Ensino Fundamental e, às vezes, até para a escola de Ensino Médio. Acontece com frequência de a mesma família ter filhos em diferentes estabelecimentos de ensino do mesmo bairro. No entanto, apesar de todas essas conexões, é raro que esses estabelecimentos se encontrem. A escola que se identifica como um agente da comunidade vai, muitas vezes, buscar conhecer, trocar experiências e unir forças com as outras escolas, criando, em alguns casos, até mesmo um plano educativo local. Esse plano parte do compartilhamento de experiências, visões e desafios das instituições do lugar, da definição de objetivos comuns e da eleição de prioridades.

No compartilhamento dos desafios enfrentados pelas escolas do mesmo território, certamente elas se deparam com questões que não são capazes de solucionar sem o engajamento de agentes de outros setores: alunos que faltam muito porque as famílias estão passando por situação de vulnerabilidade, estudantes que sofrem violência doméstica, jovens que precisam sair mais cedo porque não há transporte público no horário necessário, episódios recorrentes de assalto no entorno da escola. Para enfrentar problemas desse tipo, as escolas precisam buscar outros agentes do território: assistência social, saúde, transporte, segurança, entre outros. Juntos, criam estratégias que fazem funcionar o sistema de garantia de direitos e são capazes de mobilizar a comunidade local para reivindicar seus direitos. Por isso, as associações de moradores e outras organizações comunitárias são agentes estratégicos do território educativo.

O diagnóstico feito pelas escolas pode apontar desafios ambientais, ausências de espaços de lazer e oportunidades culturais. Nesse caso, os parceiros a serem procurados são os da cultura, esporte, comunicação, meio ambiente, entre outros. Tanto os equipamentos públicos quanto os agentes comunitários e mesmo os equipamentos privados.

Um bom exemplo é o Bairro Educador de Heliópolis, na cidade de São Paulo, em que a catalisação de todo o processo foi feita pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Campos Salles, em aliança com a União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS). Concentrando-se inicialmente na transformação de uma área degradada no entorno da escola em uma área de lazer que comportasse mais escolas para atender à alta demanda local, a aliança iniciada no final dos anos 90 segue até hoje, incluindo cada vez mais agentes para atender aos 125 mil moradores da região.

Com mais de mil estudantes, na Campos Salles, não há aulas. Nem salas de aula. Em um ambiente que valoriza a convivência democrática, a estrutura é de amplos salões, com mesas em que grupos de estudantes trabalham juntos, com base em roteiros de pesquisas escolhidos por eles. Quando precisam de ajuda, recorrem aos três professores que estão no espaço no momento. Os professores trabalham em parceria, rompendo com a estrutura do isolamento da sala de aula. A gestão da convivência escolar é feita pela República de Alunos, em que há um prefeito e vereadores eleitos pelo conjunto de estudantes, secretários nomeados pelo prefeito e comissões mediadoras.

Da aliança entre a Campos Salles e a UNAS, nasceu a Caminhada da Paz, que há 20 anos leva milhares de pessoas às ruas do bairro, com bandeiras e cartazes, resultantes de pesquisas que envolvem estudantes e educadores ao longo do ano. A organização anual da Caminhada é feita pelo Movimento Sol da Paz, que une escolas, associações de moradores, organizações da assistência social, da cultura e do esporte.

Há uma dimensão quantitativa dos resultados alcançados. Além da Campos Salles, a comunidade conquistou uma escola de Educação Infantil, uma escola técnica e uma universidade aberta. Na escola técnica, são oferecidos cursos de escolha da comunidade – nutrição, edificações e webdesign. O Bairro Educador de Heliópolis conquistou também onze Centros de Educação Infantil (CEI), oito Centros da Criança e do Adolescente (CCAs), dois núcleos do Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, o Serviço de Atendimento Social a Família (SASF) e sete núcleos do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), todos geridos pela UNAS. Além dos equipamentos educativos, o Bairro Educador conta com uma biblioteca, um teatro/cinema, uma escola de música que sedia a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, um centro poliesportivo, um Ponto de Cultura, uma rádio comunitária e um laboratório de fabricação digital. Todos esses equipamentos conquistados pela comunidade foram integrados pela gestão municipal constituindo um Centro Educacional Unificado (CEU). Na moradia, a conquista se revela em um condomínio com prédios redondos projetados em parceria entre a comunidade e o arquiteto, com área de lazer e comunitária.

Jovens agentes de transformação

Quando a escola se reconhece como agente da comunidade, possibilita que seu currículo seja construído na interface entre os desafios locais e os interesses dos estudantes. Os estudantes, motivados pela leitura compartilhada dos desafios locais, muitas vezes, são os catalisadores dos processos que podem transformar o lugar em um território educativo.

Em Araguatins, região do Bico do Papagaio, no Tocantins, Rhenan Cauê, de 13 anos, foi motivado pelo Colégio Estadual Osvaldo Franco a desenvolver uma iniciativa para enfrentar os desafios ambientais que o sensibilizavam. Na escola, Rhenan compreendeu que a sujeira do Rio Brejinho, o afluente do Araguaia em sua cidade, era a responsável pelas doenças tropicais como a dengue e a lepra, que vitimavam os moradores lugar. Para enfrentar a questão, Rhenan e os colegas vão às escolas para falar da prevenção das doenças tropicais, além de liderarem ações de conscientização em relação à mudança climática. Mas, foi com o projeto para limpar o rio, que Rhenan foi indicado como representante de sua escola na Conferência Estadual Escolar de Meio Ambiente e, depois, na Nacional. A partir disso, adquiriu as ferramentas para colocar o projeto em pé. Junto com os colegas, primeiro engajaram as outras escolas e organizações da sociedade civil para o mutirão de limpeza do rio. No processo, mobilizaram Prefeitura, Polícia Militar, Ambiental, Corpo de Bombeiros, Órgãos ambientais, universidades, Promotoria de Justiça. Rio limpo, partiram para a construção de alianças com Governo do estado e demais agentes do território, em busca das sementes para o plantio de árvores que dará origem à construção de um parque ecológico.

São muitos os exemplos de escolas que estimulam jovens a desenvolverem projetos para a transformação positiva de seus contextos. Escolas de Ensino Médio e técnico em áreas rurais que integram os saberes comunitários com os saberes científicos de manejo agroecológico, possibilitando aos jovens as condições para permanecer no campo, realizando-se pessoal, profissional e socialmente. Escolas em territórios indígenas que sediam os planos de manejo anuais da comunidade, tendo os estudantes como seus protagonistas. Escolas que se tornam polos culturais da comunidade, sediando eventos, mostras, festivais e outras iniciativas que valorizam as expressões locais, inclusive criando novas oportunidades econômicas. Todas essas experiências revelam é que o território educativo se constitui exatamente como resultado da ação articulada e catalisadora de escolas e estudantes que integram e potencializam as oportunidades locais.

texto Helena Singer

 

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Planejamento coletivo e gestão democrática são caminhos de ampliação da escola para a transformação da comunidade.

Já se tornou corriqueiro nos debates sobre educação lembrar que o mundo vem mudando velozmente nas últimas décadas e que este campo social, especialmente no que se refere à sua principal instituição — a escola e o sistema escolar —, precisa se reinventar para a nova realidade. Vamos avançar um pouco mais nessa reflexão.

A revolução tecnológica possibilitou a coordenação eficiente de grande número de fornecedores independentes, demolindo o gigantismo burocrático que dominava a organização interna das empresas, marcadas por fortes hierarquias e departamentalização dos conhecimentos. Na mesma direção, possibilitou a multiplicação de micro, pequenas e médias empresas na indústria, na agricultura e nos serviços, que passaram a se organizar em rede, não mais nas estruturas hierárquicas anteriores. Nos ambientes de trabalho, valoriza-se cada vez menos a alta especialização e cada vez mais a participação e criação.

A produção de conhecimento científico e de bens culturais passou a se organizar também de modo descentralizado, com base em novas e sofisticadas formas de trabalho em equipe e em rede, e a catalisação de oportunidades e recursos.

Estão dadas as condições tecnológicas para que pessoas e coletivos sejam agentes econômicos e sociais produtivos e, mais importante, agentes de mudanças sociais positivas. Para que isso se torne realidade, é urgente um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, que valorize a diversidade ambiental e cultural do país para a superação da sua inaceitável desigualdade econômica. Um projeto dessa natureza permite reconhecer o papel estratégico que as escolas podem desempenhar. Como a principal instituição formadora das novas gerações e produtora de conhecimento, a escola pode catalisar processos e projetos que favoreçam o desenvolvimento local.

Hoje no Brasil, assim como em muitos outros países, a escola é o equipamento público mais bem distribuído pelo território nacional. Tal equipamento possui um corpo multidisciplinar de profissionais, proximidade cotidiana com as famílias e a maior de todas as potências nacionais: as crianças e os jovens. Essas pessoas que, não tendo sido formadas no mundo da repetição, das hierarquias e especializações, não têm nada a desaprender e possuem todas as condições para se desenvolverem como agentes de transformação positiva.

Escola transformadora

A transformação da escola em um centro local de produção de conhecimento e cultura começa pela construção coletiva do seu projeto político pedagógico (PPP). Gestores, professores, colaboradores, estudantes, famílias e agentes da comunidade são convidados a refletir juntos sobre o contexto em que se encontram. Considerando o contexto social, a origem e a cultura das pessoas do lugar, os desafios econômicos, sociais e ambientais e as potências locais, qual o papel que a escola deve desempenhar para que as crianças e jovens daqui tenham condições de se realizar pessoal e profissionalmente?

Ao responder a tal pergunta coletivamente, o projeto pedagógico da escola definirá sua visão, seus valores e sua forma de organização. A partir disso, a cada ano o currículo será desenhado de modo a engajar estudantes e professores em processos de pesquisa e projetos de intervenção que possibilitem a realização do objetivo maior da escola. Partindo do levantamento da história, da paisagem, das expressões e tradições culturais e dos desafios socioambientais, cada instituição define seu plano anual, considerando as potências locais, os objetivos comunitários e os interesses dos estudantes, para o desenvolvimento de projetos coletivos que, ao mesmo tempo e tomam o lugar um território educativo, possibilitam que os estudantes aprendam a manejar e interpretar as informações, criando novas soluções e oportunidades.

A base metodológica da escola transformadora busca garantir o desenvolvimento de quatro habilidades fundamentais para o mundo em constante transformação. A primeira é a empatia: já não é possível realizar o bem comum seguindo estritamente as regras, por isso dependemos cada vez mais da capacidade de compreender as diferentes formas de conexão entre pessoas, seres vivos, coletivos e instituições, e como as mudanças constantes afetam tais conexões para, assim, encontrar as soluções que priorizam o todo. A empatia só pode se desenvolver no coletivo. O primeiro coletivo é a própria escola, na qual os estudantes devem ser convocados a participar da elaboração e da implementação das regras de convivência, da mediação de conflitos e dos cuidados com o outro e com o que é de todos. O segundo coletivo a que o estudante deve se engajar é o da comunidade em que está inserida a escola. É no contexto comunitário que o estudante deve ser participante ativo nos processos de investigação, reflexão e intervenção sempre pautados pelo bem comum.

Neste mundo em constante transformação, as institucionalidades, os departamentos e as hierarquias têm cada vez menos relevância. As pessoas estão frequentemente atuando em grupos diversos, novas equipes se formam em torno de objetivos comuns e depois se dissolvem. Ser capaz de assumir papéis diferentes e complementares em equipes diferentes, ora liderando processos, ora sendo liderado, é condição básica para a realização profissional e social. Chegamos aqui à segunda habilidade a ser desenvolvida na escola transformadora: trabalhar em equipes fluidas, com pessoas de competências, culturas e interesses diversos, construindo projetos conjuntos.

Cada vez mais, há uma urgência pela atitude. É um momento histórico em que não há tempo para soluções que colocam em risco a própria existência de futuro. O imediatismo e as emergências exigem indivíduos com uma atitude ao mesmo tempo prudente e criativa, que sejam capazes de formular novas soluções para problemas socioambientais urgentes. Soluções que criadas com base no domínio das diferentes linguagens, ciências e saberes, mas que sejam capazes de reinventá-las. A criatividade é, portanto, outra habilidade a ser desenvolvida.

A síntese de tudo isso pode ser o tão falado protagonismo do estudante. Esse pode ser um termo que expresse o movimento de o estudante se sensibilizar em relação a alguma questão, engajar outras pessoas no processo de criar ideias para enfrentá-la e colocar tais ideias em prática. O estudante transforma seu meio ao mesmo tempo que se transforma.

Território educativo

A escola que forma indivíduos capazes de se reconhecer como agentes de mudança e que conhecem sua potência para melhorar o mundo, catalisa processos que transformam seus contextos em territórios orientados para o pleno desenvolvimento de todos.

quando a escola se reconhece como agente da comunidade, transforma seu currículo para atender aos problemas locais.

Quando a escola mobiliza sua equipe e seus estudantes para investigar o lugar o em que está e os convida a pensar como o ambiente pode ser melhorado, invariavelmente induz a conhecer outros agentes do território que também têm potencial para transformá-lo e estão disponíveis para isso. Normalmente há em um mesmo território, outros estabelecimentos do sistema educacional, creches ou escolas, voltadas para outros níveis de ensino ou pertencentes a outras redes de ensino. Em alguns casos, há também instituições de nível superior. É comum que a maior parte de crianças de uma determinada creche siga para a mesma escola da Educação Infantil, dessa para a de Ensino Fundamental e, às vezes, até para a escola de Ensino Médio. Acontece com frequência de a mesma família ter filhos em diferentes estabelecimentos de ensino do mesmo bairro. No entanto, apesar de todas essas conexões, é raro que esses estabelecimentos se encontrem. A escola que se identifica como um agente da comunidade vai, muitas vezes, buscar conhecer, trocar experiências e unir forças com as outras escolas, criando, em alguns casos, até mesmo um plano educativo local. Esse plano parte do compartilhamento de experiências, visões e desafios das instituições do lugar, da definição de objetivos comuns e da eleição de prioridades.

No compartilhamento dos desafios enfrentados pelas escolas do mesmo território, certamente elas se deparam com questões que não são capazes de solucionar sem o engajamento de agentes de outros setores: alunos que faltam muito porque as famílias estão passando por situação de vulnerabilidade, estudantes que sofrem violência doméstica, jovens que precisam sair mais cedo porque não há transporte público no horário necessário, episódios recorrentes de assalto no entorno da escola. Para enfrentar problemas desse tipo, as escolas precisam buscar outros agentes do território: assistência social, saúde, transporte, segurança, entre outros. Juntos, criam estratégias que fazem funcionar o sistema de garantia de direitos e são capazes de mobilizar a comunidade local para reivindicar seus direitos. Por isso, as associações de moradores e outras organizações comunitárias são agentes estratégicos do território educativo.

O diagnóstico feito pelas escolas pode apontar desafios ambientais, ausências de espaços de lazer e oportunidades culturais. Nesse caso, os parceiros a serem procurados são os da cultura, esporte, comunicação, meio ambiente, entre outros. Tanto os equipamentos públicos quanto os agentes comunitários e mesmo os equipamentos privados.

Um bom exemplo é o Bairro Educador de Heliópolis, na cidade de São Paulo, em que a catalisação de todo o processo foi feita pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Campos Salles, em aliança com a União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS). Concentrando-se inicialmente na transformação de uma área degradada no entorno da escola em uma área de lazer que comportasse mais escolas para atender à alta demanda local, a aliança iniciada no final dos anos 90 segue até hoje, incluindo cada vez mais agentes para atender aos 125 mil moradores da região.

Com mais de mil estudantes, na Campos Salles, não há aulas. Nem salas de aula. Em um ambiente que valoriza a convivência democrática, a estrutura é de amplos salões, com mesas em que grupos de estudantes trabalham juntos, com base em roteiros de pesquisas escolhidos por eles. Quando precisam de ajuda, recorrem aos três professores que estão no espaço no momento. Os professores trabalham em parceria, rompendo com a estrutura do isolamento da sala de aula. A gestão da convivência escolar é feita pela República de Alunos, em que há um prefeito e vereadores eleitos pelo conjunto de estudantes, secretários nomeados pelo prefeito e comissões mediadoras.

Da aliança entre a Campos Salles e a UNAS, nasceu a Caminhada da Paz, que há 20 anos leva milhares de pessoas às ruas do bairro, com bandeiras e cartazes, resultantes de pesquisas que envolvem estudantes e educadores ao longo do ano. A organização anual da Caminhada é feita pelo Movimento Sol da Paz, que une escolas, associações de moradores, organizações da assistência social, da cultura e do esporte.

Há uma dimensão quantitativa dos resultados alcançados. Além da Campos Salles, a comunidade conquistou uma escola de Educação Infantil, uma escola técnica e uma universidade aberta. Na escola técnica, são oferecidos cursos de escolha da comunidade – nutrição, edificações e webdesign. O Bairro Educador de Heliópolis conquistou também onze Centros de Educação Infantil (CEI), oito Centros da Criança e do Adolescente (CCAs), dois núcleos do Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, o Serviço de Atendimento Social a Família (SASF) e sete núcleos do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), todos geridos pela UNAS. Além dos equipamentos educativos, o Bairro Educador conta com uma biblioteca, um teatro/cinema, uma escola de música que sedia a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, um centro poliesportivo, um Ponto de Cultura, uma rádio comunitária e um laboratório de fabricação digital. Todos esses equipamentos conquistados pela comunidade foram integrados pela gestão municipal constituindo um Centro Educacional Unificado (CEU). Na moradia, a conquista se revela em um condomínio com prédios redondos projetados em parceria entre a comunidade e o arquiteto, com área de lazer e comunitária.

Jovens agentes de transformação

Quando a escola se reconhece como agente da comunidade, possibilita que seu currículo seja construído na interface entre os desafios locais e os interesses dos estudantes. Os estudantes, motivados pela leitura compartilhada dos desafios locais, muitas vezes, são os catalisadores dos processos que podem transformar o lugar em um território educativo.

Em Araguatins, região do Bico do Papagaio, no Tocantins, Rhenan Cauê, de 13 anos, foi motivado pelo Colégio Estadual Osvaldo Franco a desenvolver uma iniciativa para enfrentar os desafios ambientais que o sensibilizavam. Na escola, Rhenan compreendeu que a sujeira do Rio Brejinho, o afluente do Araguaia em sua cidade, era a responsável pelas doenças tropicais como a dengue e a lepra, que vitimavam os moradores lugar. Para enfrentar a questão, Rhenan e os colegas vão às escolas para falar da prevenção das doenças tropicais, além de liderarem ações de conscientização em relação à mudança climática. Mas, foi com o projeto para limpar o rio, que Rhenan foi indicado como representante de sua escola na Conferência Estadual Escolar de Meio Ambiente e, depois, na Nacional. A partir disso, adquiriu as ferramentas para colocar o projeto em pé. Junto com os colegas, primeiro engajaram as outras escolas e organizações da sociedade civil para o mutirão de limpeza do rio. No processo, mobilizaram Prefeitura, Polícia Militar, Ambiental, Corpo de Bombeiros, Órgãos ambientais, universidades, Promotoria de Justiça. Rio limpo, partiram para a construção de alianças com Governo do estado e demais agentes do território, em busca das sementes para o plantio de árvores que dará origem à construção de um parque ecológico.

São muitos os exemplos de escolas que estimulam jovens a desenvolverem projetos para a transformação positiva de seus contextos. Escolas de Ensino Médio e técnico em áreas rurais que integram os saberes comunitários com os saberes científicos de manejo agroecológico, possibilitando aos jovens as condições para permanecer no campo, realizando-se pessoal, profissional e socialmente. Escolas em territórios indígenas que sediam os planos de manejo anuais da comunidade, tendo os estudantes como seus protagonistas. Escolas que se tornam polos culturais da comunidade, sediando eventos, mostras, festivais e outras iniciativas que valorizam as expressões locais, inclusive criando novas oportunidades econômicas. Todas essas experiências revelam é que o território educativo se constitui exatamente como resultado da ação articulada e catalisadora de escolas e estudantes que integram e potencializam as oportunidades locais.

texto Helena Singer

 

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Quando começou a lecionar em um tradicional colégio da comunidade japonesa de São Paulo, há alguns anos, o geógrafo Guilherme Sandler tinha dois caminhos a escolher: ou seguir livros didáticos e apostilas, lição após lição, transformando paisagens, fenômenos naturais e as relações entre ser humano e ambiente em uma narrativa oral muitas vezes monótona, ou poderia… inovar. Desse modo, Sandler trouxe tecnologias então recentes, como o Google Earth, criou jogos geográficos e conciliou o high-tech com papelão, fita crepe e palito de sorvete. Hoje, Guile, como é conhecido, é articulador de uma rede colaborativa de inovação com mais de 4 mil membros, a Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa.

Não, esta reportagem não trata de inovação ou de movimentos como a da aprendizagem criativa, que ganham tração e começam a impactar a educação em todo o Brasil. O objetivo é abordar um processo que ganha cada vez mais dimensão estratégica em todas as organizações: a mudança cultural, ou simplesmente a capacidade de pensar diferente, adotar novos pontos de vista, sair da caixa, reinventar-se.

A trajetória profissional vivida por esse educador exemplifica o desafio de milhões de professores brasileiros, que todos os dias iniciam seu dia atuando em um dos espaços mais tensionados pela transformação da tecnologia, do trabalho, da sociedade e do conhecimento: a escola.

Para quem logo pensa em aprender a usar computador, aplicativos, plataformas, redes sociais, calma lá. Embora a dimensão tecnológica seja parte inerente do mundo do século XXI, isso é apenas parte do desafio. A mudança cultural é bem mais ampla e pode simplesmente se referir ao modo como educamos nossos filhos e alunos, como lhes damos feedbacks sobre seu desenvolvimento, como os preparamos para superar seus desafios. Relaciona-se com a maneira como nos vemos no mundo em todas as dimensões, incluindo a profissional. Relaciona-se com a forma como interpretamos o que nos ocorre e como projetamos a ação futura. A questão é que, em um oceano de transformações, precisamos também rever a forma pela qual conduzimos nosso barco, às vezes deixando-nos levar pela onda, às vezes remando contra a maré.

Mindset fixo e de crescimento

A pesquisadora Carol S. Dweck, PhD pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, dedicou sua vida acadêmica a estudar como o comportamento das pessoas é afetado pelas suas crenças pessoais e como influencia na maneira como cada um se relaciona com o mundo, seja nos desafios, nos fracassos ou nos sucessos. Tornou-se célebre pelo livro Mindset – a nova psicologia do sucesso, que acaba de ser reeditado pela Editora Objetiva, no Brasil, com quase 2 milhões de exemplares vendidos em diversos países. Mindset significa, em sua perspectiva, a atitude mental e a forma pela qual é influenciada por crenças individuais.

A abordagem é espantosamente simples. Segundo a pesquisadora, há basicamente dois tipos de mindset: o que denomina mindset fixo e o que define como mindset de crescimento. Não se trata de separar o mundo entre otimistas e pessimistas, ou entre os que veem o copo meio cheio ou meio vazio, na expressão popular.

Na base do conceito proposto por Dweck está a divisão entre as pessoas que orientam suas condutas pela crença íntima em qualidades inatas (as de mindset fixo) ou pelas competências aprendidas e construídas pelo esforço – as de mindset de crescimento. 

Como a pesquisadora explica, acreditar que nascemos com qualidades inerentes pode levar os indivíduos a encarar todos os desafios como provas ou ameaças aos sucessos já obtidos, e assim resistir a tudo o que envolve se expor ao novo, com os previsíveis ciclos de erros e aprendizados. Segundo a pesquisadora de Stanford, pessoas de mindset fixo veem a crítica e o erro como questões de caráter e sentem-se fragilizadas em sua própria identidade quando chamadas a mudar de atitude ou a enfrentar o novo. Qualquer fracasso pode ser pesado demais.

Ao contrário, diz Carol Dweck, aqueles que entendem que o fracasso (por exemplo, nas atividades de aprendizagem ou profissionais) é simplesmente uma oportunidade para aprender e que talento não é um amuleto distintivo que trazemos do berço podem se abrir mais facilmente a possibilidades de crescimento.

Uma dimensão óbvia dessa dualidade pode ser vista na questão do esforço pessoal. Para aqueles que acreditam em desenvolvimento de virtudes, capacidades, competências, o investimento de tempo e trabalho em projetos é parte integrante do cotidiano. Para os que preferem acreditar em seus atributos inatos, todo esforço pode parecer algo desnecessário e incoerente com suas convicções.

Evidentemente, o estudo possui nuances. Todos possuímos esses dois mindsets em diferentes proporções. Além disso, podemos nos enganar achando que somos flexíveis, quando só encontramos álibis para dobrar a resistência. Mas a reflexão continua válida ao indagar sobre o que orienta nossas atitudes diante do novo. 

Desses princípios decorreram pesquisas, exemplos e análises citadas pela pesquisadora em diversos campos da atividade humana, descritas nos estudos reunidos no livro. Em alguns casos, são particularmente relevantes para a educação e são coerentes com pesquisas no campo da pedagogia e da psicologia educacional. Um exemplo interessante é como encaramos o erro e o insucesso de crianças e adolescentes e, principalmente, como manifestamos isso nas palavras que utilizamos em sala de aula.

Nesse aspecto em específico, é muito fácil perceber a diferença entre elogiar um aluno atribuindo a nota à sua inteligência (e reforçar o mindset fixo), como é frequente, ou procurar reconhecer seu esforço, sua atenção ao processo, a distância entre o ponto de partida e até onde chegou.

Na cultura da avaliação escolar brasileira, historicamente focada em métricas e notas, e com grandes índices de repetência, prevalece a primeira abordagem. “A sala de aula muitas vezes se divide, no olhar do professor, entre os mais inteligentes e menos inteligentes, entre os que terão sucesso e os que provavelmente fracassarão. Assim, prevalece o resultado final sobre o percurso individual, o esforço de superação, o processo de aprendizagem. Assim como prevalece a baixa expectativa sobre a chance de transformação do aluno”, diz a psicóloga e pedagoga Claudia Tricate, diretora do Colégio Magno, em São Paulo. 

Acreditar que nascemos com qualidades inerentes pode nos levar a encarar todos os desafios como provas ou ameaças aos sucessos já obtidos, e assim resistir ao novo.

Mas, cuidado, o risco é ir ao outro extremo e simplesmente reconhecer o esforço, mesmo que não tenha levado a lugar algum. Nesse caso, o feedback positivo equivaleria a um tapinha nas costas. “Nosso trabalho mostra que você pode elogiar o resultado, desde que também fale sobre o processo que levou a esse resultado”, explica Carol Dweck, em uma entrevista à revista pedagógica Educational Leadership. Por isso, é importante ter estratégicas mais ricas de avaliação, que permitam ter um filme do processo de aprendizagem, e não apenas um retrato final. Entre outras virtudes, isso permitirá que o aluno não se sinta sempre voltando à estaca zero e perceba que houve avanços. “O esforço é essencial, mas está a serviço do progresso e do aprendizado. Há outras coisas igualmente importantes — como encontrar estratégias bem-sucedidas e buscar sugestões”, afirma a autora norte-americana na mesma entrevista.

Dentro da mesma ótica, a maneira de ver o erro é essencial para promover o que chama de mindset de crescimento. E, nesse caso, vale ter cuidado com a hipocrisia. “De nada adianta ter um discurso sobre valorizar o erro como parte do processo e não mudar nada na conduta, rebaixando a autoestima do aluno”, diz Claudia Tricate. “Valorizar o erro significa estar ao lado do aluno, buscar as causas, mostrar que há diferentes caminhos para chegar a um mesmo resultado, encontrar as hipóteses mais sólidas”, afirma.

E agora, professor?

A reflexão sobre nossas disposições de pensamento, crenças e a mudança cultural necessária não tem a ver apenas com o fazer diário do educador, mas também com a própria forma de encarar o dever da profissão. Afinal, o futuro tem um nome: educação. Um estudo divulgado no último Fórum Econômico Mundial mostra que nos próximos 2 anos até 54% dos profissionais precisarão passar por um processo denominado “reskilling”, que pode ser traduzido por uma requalificação de competências. 

“Um mundo em constante mudança exige pessoas com novas capacidades”, explica Luciana Camargo, diretora de RH da IBM para a América Latina. Por isso, transformar a cultura das pessoas e das empresas está entre os desafios que mais preocupam líderes globalmente. “Este é um desafio para as pessoas, mas também para empresas, uma vez que a era digital introduz novos modelos de negócios, novas formas de trabalho e a necessidade de uma cultura flexível que promova o desenvolvimento de todas as potencialidades das pessoas”, esclarece a executiva.

Acreditar que ser professor é fruto de um talento inato pode ser desanimador. Não há professor que não tenha algo a aprender ou a mudar

Flexibilidade, adaptabilidade a mudanças, gerenciamento do tempo, habilidade de priorizar e trabalhar em ambientes colaborativos são as competências essenciais para quem está no mercado de trabalho. Não há receita para mudar, mas, sem dúvida, a chave é a educação. É preciso pensar sobre como se aprende na fase adulta e, para isso, existe o termo andragogia ou pedagogia para adultos.

Um estudo da consultoria global Delloitte ouviu mais de 10 mil líderes em 169 países no ano passado e descobriu que a maior preocupação para 86% deles é justamente encontrar novas formas pelas quais as pessoas possam aprender e mudar, em seus próprios ambientes de trabalho. Mudar passa por aprender e reaprender sempre, por toda a vida, sem que isso signifique um demérito profissional, por mais talentoso que seja o funcionário da empresa.

A pesquisa de Carol Dweck tem algo a dizer sobre isso também. Para ela, acreditar que ser professor é fruto de um talento especial e inato pode também ser desanimador, especialmente em contextos desafiadores, como as salas de aulas das escolas de hoje. Não há professor que não tenha algo a aprender ou a mudar atualmente, seja nas escolas de elite, seja nas escolas públicas de áreas vulneráveis.

“Os novos professores geralmente têm uma percepção frágil de si mesmos em uma profissão tão exigente. Com uma mentalidade fixa, eles sentem que suas habilidades estão sendo julgadas, e podem esconder suas lutas. Mas em uma mentalidade de crescimento, você deseja que as pessoas possam lhe dar o feedback mais honesto possível”, diz.

Essa é uma barreira que precisa ser definitivamente superada. Mundo afora, as políticas de formação de professores em sistemas educacionais bem-sucedidos, como Japão, Coreia do Sul, Finlândia, frequentemente envolvem mentoria com professores mais experientes, estudo de aulas gravadas, feedbacks constantes. Parte essencial do trabalho das lideranças escolares é justamente acompanhar, encorajar e aprimorar o trabalho dos professores, e isso também é um aprendizado para os gestores brasileiros, porque dar bons feedbacks também requer um aprendizado.

“Muitas vezes, feedback é entendido como crítica construtiva. No entanto, é uma ferramenta poderosa para apreciar o que as pessoas estão fazendo bem e ajudar na reflexão sobre onde poderiam melhorar. Encorajar a mentalidade de crescimento e reflexão sobre o que se aprendeu com a experiência é uma forma positiva de incentivar as pessoas a crescerem”, diz Luciana Camargo.

Mas, claro, é preciso ter sempre em mente que mudar não é um processo simples para ninguém. Para o psicólogo José Ernesto Bologna, consultor de grandes empresas e de escolas brasileiras, trata-se de um desafio complexo que deve partir da compreensão do que precisa ser mudado. “Mudar envolve opiniões, visões de mundo, falas, atos, formas, estilos pessoais, sentimentos, abandonar antigas mágoas, antigas resistências, ser mais flexível em valores e juízos, ou se tornar mais rígido. Enfim, mudar a própria dificuldade de mudar”, lembra.

Segundo Bologna, memórias, princípios, conceitos, ideias, afetos, falas e atos, juntos, integram um sistema complexo que podemos denominar estilo, o popular jeito de cada um. “Cada um desses elementos constitutivos alimenta, realimenta, retroalimenta, e, assim, mantém todos os outros. Portanto, a personalidade, o estilo pessoal, com o tempo vai cristalizando, sulcando, os mesmos mecanismos e caminhos. É esse fenômeno psicodinâmico (a maneira de a mente manter o funcionamento da própria mente) que torna mudar progressivamente difícil com o tempo. Os adultos não mudam por falta de consciência da vantagem de viver experimentalmente, e da coragem de enxergar de novas formas”, define o especialista.  O que também é um desafio (e tanto) para a escola e para os educadores, não é mesmo?

Problemas brasileiros

A complexidade do cenário apontado por Bologna tem ingredientes próprios: a realidade da educação e da sociedade brasileira. Esse é um ponto essencial, que está na base de críticas possíveis a propostas como a defendida por Carol Dweck. Concentrar as soluções na postura de indivíduos pode levar a um grande erro: isentar o Estado ou as empresas de oferecer condições dignas de trabalho para seus profissionais.

No caso da realidade educacional brasileira, os desafios estão postos e são conhecidos. Há problemas por toda parte: salas lotadas, baixos salários, pouco tempo para a formação em serviço e para o planejamento. Nesse ecossistema tão multifacetado, não se pode esperar que a qualidade das escolas e o grau de engajamento profissional mude por esforço dos indivíduos – na medida em que é fruto de um contexto social mais amplo, em um país com quase 50 milhões de alunos e 2,1 milhões de professores.

Segundo a pesquisa Talis, que envolveu 48 países e foi divulgada no final de 2018 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde), quase 40% dos professores de Ensino Médio das escolas públicas brasileiras veem mais desvantagens do que vantagens em ser professor. Isso coloca o Brasil abaixo de países como Vietnã e Emirados Árabes. Apenas 11% dos professores de Ensino Fundamental – anos fundamentais acham que sua profissão é valorizada pela sociedade, um dos índices mais baixos do estudo.

A questão da infraestrutura é particularmente questionada. Cerca de 71% dos diretores das escolas públicas acreditam que seu trabalho fica mais difícil pela falta de internet. No plano dos salários, os docentes da rede pública ainda recebem, em média, 70% menos do que os demais profissionais com ensino superior.

É um cenário complexo que não se muda apenas com disposições individuais. Depende de prioridade política, pressão e controle social, mas que também não se transforma sem mudança de mentalidade dos profissionais da educação. A pesquisa Talis ainda mostra, por exemplo, que, apesar de meio século passado desde que os estudos do pesquisador brasileiro Sérgio Costa Ribeiro trouxeram à tona a chamada Pedagogia da Repetência, o país ainda continua sendo um dos que mais reprovam no mundo. Em 2018, 71% dos docentes continuam acreditando que é bom para a formação do aluno que ele repita o ano, caso tenha recebido notas baixas. Além disso, o contexto global aponta para grandes transformações na organização da educação, que se torna um processo cada vez mais disseminado fora da escola.

No século XXI, como previu o pesquisador português Rui Canário, a educação deixa de ser refém da escola e passa a acontecer em muitos outros ambientes sociais, presenciais e virtuais. Os educadores são profissionais de importância indiscutível, sobre o qual se assentam todas as esperanças de um mundo melhor. Assim, também se ampliam as possibilidades de atuação do educador, que precisa rever as bases de suas convicções para que possa participar sem temores do processo de reskilling vivido por todas as categorias profissionais. Nesse caso, sim, é hora de cada professor aceitar o conselho de Dweck e refletir sobre seu próprio mindset. E por que não?

Para saber mais

Pesquisa Talis. Disponível em:mod.lk/ed18pens. Acesso em: 9 fev. 2020. 

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Quando começou a lecionar em um tradicional colégio da comunidade japonesa de São Paulo, há alguns anos, o geógrafo Guilherme Sandler tinha dois caminhos a escolher: ou seguir livros didáticos e apostilas, lição após lição, transformando paisagens, fenômenos naturais e as relações entre ser humano e ambiente em uma narrativa oral muitas vezes monótona, ou poderia… inovar. Desse modo, Sandler trouxe tecnologias então recentes, como o Google Earth, criou jogos geográficos e conciliou o high-tech com papelão, fita crepe e palito de sorvete. Hoje, Guile, como é conhecido, é articulador de uma rede colaborativa de inovação com mais de 4 mil membros, a Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa.

Não, esta reportagem não trata de inovação ou de movimentos como a da aprendizagem criativa, que ganham tração e começam a impactar a educação em todo o Brasil. O objetivo é abordar um processo que ganha cada vez mais dimensão estratégica em todas as organizações: a mudança cultural, ou simplesmente a capacidade de pensar diferente, adotar novos pontos de vista, sair da caixa, reinventar-se.

A trajetória profissional vivida por esse educador exemplifica o desafio de milhões de professores brasileiros, que todos os dias iniciam seu dia atuando em um dos espaços mais tensionados pela transformação da tecnologia, do trabalho, da sociedade e do conhecimento: a escola.

Para quem logo pensa em aprender a usar computador, aplicativos, plataformas, redes sociais, calma lá. Embora a dimensão tecnológica seja parte inerente do mundo do século XXI, isso é apenas parte do desafio. A mudança cultural é bem mais ampla e pode simplesmente se referir ao modo como educamos nossos filhos e alunos, como lhes damos feedbacks sobre seu desenvolvimento, como os preparamos para superar seus desafios. Relaciona-se com a maneira como nos vemos no mundo em todas as dimensões, incluindo a profissional. Relaciona-se com a forma como interpretamos o que nos ocorre e como projetamos a ação futura. A questão é que, em um oceano de transformações, precisamos também rever a forma pela qual conduzimos nosso barco, às vezes deixando-nos levar pela onda, às vezes remando contra a maré.

Mindset fixo e de crescimento

A pesquisadora Carol S. Dweck, PhD pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, dedicou sua vida acadêmica a estudar como o comportamento das pessoas é afetado pelas suas crenças pessoais e como influencia na maneira como cada um se relaciona com o mundo, seja nos desafios, nos fracassos ou nos sucessos. Tornou-se célebre pelo livro Mindset – a nova psicologia do sucesso, que acaba de ser reeditado pela Editora Objetiva, no Brasil, com quase 2 milhões de exemplares vendidos em diversos países. Mindset significa, em sua perspectiva, a atitude mental e a forma pela qual é influenciada por crenças individuais.

A abordagem é espantosamente simples. Segundo a pesquisadora, há basicamente dois tipos de mindset: o que denomina mindset fixo e o que define como mindset de crescimento. Não se trata de separar o mundo entre otimistas e pessimistas, ou entre os que veem o copo meio cheio ou meio vazio, na expressão popular.

Na base do conceito proposto por Dweck está a divisão entre as pessoas que orientam suas condutas pela crença íntima em qualidades inatas (as de mindset fixo) ou pelas competências aprendidas e construídas pelo esforço – as de mindset de crescimento. 

Como a pesquisadora explica, acreditar que nascemos com qualidades inerentes pode levar os indivíduos a encarar todos os desafios como provas ou ameaças aos sucessos já obtidos, e assim resistir a tudo o que envolve se expor ao novo, com os previsíveis ciclos de erros e aprendizados. Segundo a pesquisadora de Stanford, pessoas de mindset fixo veem a crítica e o erro como questões de caráter e sentem-se fragilizadas em sua própria identidade quando chamadas a mudar de atitude ou a enfrentar o novo. Qualquer fracasso pode ser pesado demais.

Ao contrário, diz Carol Dweck, aqueles que entendem que o fracasso (por exemplo, nas atividades de aprendizagem ou profissionais) é simplesmente uma oportunidade para aprender e que talento não é um amuleto distintivo que trazemos do berço podem se abrir mais facilmente a possibilidades de crescimento.

Uma dimensão óbvia dessa dualidade pode ser vista na questão do esforço pessoal. Para aqueles que acreditam em desenvolvimento de virtudes, capacidades, competências, o investimento de tempo e trabalho em projetos é parte integrante do cotidiano. Para os que preferem acreditar em seus atributos inatos, todo esforço pode parecer algo desnecessário e incoerente com suas convicções.

Evidentemente, o estudo possui nuances. Todos possuímos esses dois mindsets em diferentes proporções. Além disso, podemos nos enganar achando que somos flexíveis, quando só encontramos álibis para dobrar a resistência. Mas a reflexão continua válida ao indagar sobre o que orienta nossas atitudes diante do novo. 

Desses princípios decorreram pesquisas, exemplos e análises citadas pela pesquisadora em diversos campos da atividade humana, descritas nos estudos reunidos no livro. Em alguns casos, são particularmente relevantes para a educação e são coerentes com pesquisas no campo da pedagogia e da psicologia educacional. Um exemplo interessante é como encaramos o erro e o insucesso de crianças e adolescentes e, principalmente, como manifestamos isso nas palavras que utilizamos em sala de aula.

Nesse aspecto em específico, é muito fácil perceber a diferença entre elogiar um aluno atribuindo a nota à sua inteligência (e reforçar o mindset fixo), como é frequente, ou procurar reconhecer seu esforço, sua atenção ao processo, a distância entre o ponto de partida e até onde chegou.

Na cultura da avaliação escolar brasileira, historicamente focada em métricas e notas, e com grandes índices de repetência, prevalece a primeira abordagem. “A sala de aula muitas vezes se divide, no olhar do professor, entre os mais inteligentes e menos inteligentes, entre os que terão sucesso e os que provavelmente fracassarão. Assim, prevalece o resultado final sobre o percurso individual, o esforço de superação, o processo de aprendizagem. Assim como prevalece a baixa expectativa sobre a chance de transformação do aluno”, diz a psicóloga e pedagoga Claudia Tricate, diretora do Colégio Magno, em São Paulo. 

Acreditar que nascemos com qualidades inerentes pode nos levar a encarar todos os desafios como provas ou ameaças aos sucessos já obtidos, e assim resistir ao novo.

Mas, cuidado, o risco é ir ao outro extremo e simplesmente reconhecer o esforço, mesmo que não tenha levado a lugar algum. Nesse caso, o feedback positivo equivaleria a um tapinha nas costas. “Nosso trabalho mostra que você pode elogiar o resultado, desde que também fale sobre o processo que levou a esse resultado”, explica Carol Dweck, em uma entrevista à revista pedagógica Educational Leadership. Por isso, é importante ter estratégicas mais ricas de avaliação, que permitam ter um filme do processo de aprendizagem, e não apenas um retrato final. Entre outras virtudes, isso permitirá que o aluno não se sinta sempre voltando à estaca zero e perceba que houve avanços. “O esforço é essencial, mas está a serviço do progresso e do aprendizado. Há outras coisas igualmente importantes — como encontrar estratégias bem-sucedidas e buscar sugestões”, afirma a autora norte-americana na mesma entrevista.

Dentro da mesma ótica, a maneira de ver o erro é essencial para promover o que chama de mindset de crescimento. E, nesse caso, vale ter cuidado com a hipocrisia. “De nada adianta ter um discurso sobre valorizar o erro como parte do processo e não mudar nada na conduta, rebaixando a autoestima do aluno”, diz Claudia Tricate. “Valorizar o erro significa estar ao lado do aluno, buscar as causas, mostrar que há diferentes caminhos para chegar a um mesmo resultado, encontrar as hipóteses mais sólidas”, afirma.

E agora, professor?

A reflexão sobre nossas disposições de pensamento, crenças e a mudança cultural necessária não tem a ver apenas com o fazer diário do educador, mas também com a própria forma de encarar o dever da profissão. Afinal, o futuro tem um nome: educação. Um estudo divulgado no último Fórum Econômico Mundial mostra que nos próximos 2 anos até 54% dos profissionais precisarão passar por um processo denominado “reskilling”, que pode ser traduzido por uma requalificação de competências. 

“Um mundo em constante mudança exige pessoas com novas capacidades”, explica Luciana Camargo, diretora de RH da IBM para a América Latina. Por isso, transformar a cultura das pessoas e das empresas está entre os desafios que mais preocupam líderes globalmente. “Este é um desafio para as pessoas, mas também para empresas, uma vez que a era digital introduz novos modelos de negócios, novas formas de trabalho e a necessidade de uma cultura flexível que promova o desenvolvimento de todas as potencialidades das pessoas”, esclarece a executiva.

Acreditar que ser professor é fruto de um talento inato pode ser desanimador. Não há professor que não tenha algo a aprender ou a mudar

Flexibilidade, adaptabilidade a mudanças, gerenciamento do tempo, habilidade de priorizar e trabalhar em ambientes colaborativos são as competências essenciais para quem está no mercado de trabalho. Não há receita para mudar, mas, sem dúvida, a chave é a educação. É preciso pensar sobre como se aprende na fase adulta e, para isso, existe o termo andragogia ou pedagogia para adultos.

Um estudo da consultoria global Delloitte ouviu mais de 10 mil líderes em 169 países no ano passado e descobriu que a maior preocupação para 86% deles é justamente encontrar novas formas pelas quais as pessoas possam aprender e mudar, em seus próprios ambientes de trabalho. Mudar passa por aprender e reaprender sempre, por toda a vida, sem que isso signifique um demérito profissional, por mais talentoso que seja o funcionário da empresa.

A pesquisa de Carol Dweck tem algo a dizer sobre isso também. Para ela, acreditar que ser professor é fruto de um talento especial e inato pode também ser desanimador, especialmente em contextos desafiadores, como as salas de aulas das escolas de hoje. Não há professor que não tenha algo a aprender ou a mudar atualmente, seja nas escolas de elite, seja nas escolas públicas de áreas vulneráveis.

“Os novos professores geralmente têm uma percepção frágil de si mesmos em uma profissão tão exigente. Com uma mentalidade fixa, eles sentem que suas habilidades estão sendo julgadas, e podem esconder suas lutas. Mas em uma mentalidade de crescimento, você deseja que as pessoas possam lhe dar o feedback mais honesto possível”, diz.

Essa é uma barreira que precisa ser definitivamente superada. Mundo afora, as políticas de formação de professores em sistemas educacionais bem-sucedidos, como Japão, Coreia do Sul, Finlândia, frequentemente envolvem mentoria com professores mais experientes, estudo de aulas gravadas, feedbacks constantes. Parte essencial do trabalho das lideranças escolares é justamente acompanhar, encorajar e aprimorar o trabalho dos professores, e isso também é um aprendizado para os gestores brasileiros, porque dar bons feedbacks também requer um aprendizado.

“Muitas vezes, feedback é entendido como crítica construtiva. No entanto, é uma ferramenta poderosa para apreciar o que as pessoas estão fazendo bem e ajudar na reflexão sobre onde poderiam melhorar. Encorajar a mentalidade de crescimento e reflexão sobre o que se aprendeu com a experiência é uma forma positiva de incentivar as pessoas a crescerem”, diz Luciana Camargo.

Mas, claro, é preciso ter sempre em mente que mudar não é um processo simples para ninguém. Para o psicólogo José Ernesto Bologna, consultor de grandes empresas e de escolas brasileiras, trata-se de um desafio complexo que deve partir da compreensão do que precisa ser mudado. “Mudar envolve opiniões, visões de mundo, falas, atos, formas, estilos pessoais, sentimentos, abandonar antigas mágoas, antigas resistências, ser mais flexível em valores e juízos, ou se tornar mais rígido. Enfim, mudar a própria dificuldade de mudar”, lembra.

Segundo Bologna, memórias, princípios, conceitos, ideias, afetos, falas e atos, juntos, integram um sistema complexo que podemos denominar estilo, o popular jeito de cada um. “Cada um desses elementos constitutivos alimenta, realimenta, retroalimenta, e, assim, mantém todos os outros. Portanto, a personalidade, o estilo pessoal, com o tempo vai cristalizando, sulcando, os mesmos mecanismos e caminhos. É esse fenômeno psicodinâmico (a maneira de a mente manter o funcionamento da própria mente) que torna mudar progressivamente difícil com o tempo. Os adultos não mudam por falta de consciência da vantagem de viver experimentalmente, e da coragem de enxergar de novas formas”, define o especialista.  O que também é um desafio (e tanto) para a escola e para os educadores, não é mesmo?

Problemas brasileiros

A complexidade do cenário apontado por Bologna tem ingredientes próprios: a realidade da educação e da sociedade brasileira. Esse é um ponto essencial, que está na base de críticas possíveis a propostas como a defendida por Carol Dweck. Concentrar as soluções na postura de indivíduos pode levar a um grande erro: isentar o Estado ou as empresas de oferecer condições dignas de trabalho para seus profissionais.

No caso da realidade educacional brasileira, os desafios estão postos e são conhecidos. Há problemas por toda parte: salas lotadas, baixos salários, pouco tempo para a formação em serviço e para o planejamento. Nesse ecossistema tão multifacetado, não se pode esperar que a qualidade das escolas e o grau de engajamento profissional mude por esforço dos indivíduos – na medida em que é fruto de um contexto social mais amplo, em um país com quase 50 milhões de alunos e 2,1 milhões de professores.

Segundo a pesquisa Talis, que envolveu 48 países e foi divulgada no final de 2018 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde), quase 40% dos professores de Ensino Médio das escolas públicas brasileiras veem mais desvantagens do que vantagens em ser professor. Isso coloca o Brasil abaixo de países como Vietnã e Emirados Árabes. Apenas 11% dos professores de Ensino Fundamental – anos fundamentais acham que sua profissão é valorizada pela sociedade, um dos índices mais baixos do estudo.

A questão da infraestrutura é particularmente questionada. Cerca de 71% dos diretores das escolas públicas acreditam que seu trabalho fica mais difícil pela falta de internet. No plano dos salários, os docentes da rede pública ainda recebem, em média, 70% menos do que os demais profissionais com ensino superior.

É um cenário complexo que não se muda apenas com disposições individuais. Depende de prioridade política, pressão e controle social, mas que também não se transforma sem mudança de mentalidade dos profissionais da educação. A pesquisa Talis ainda mostra, por exemplo, que, apesar de meio século passado desde que os estudos do pesquisador brasileiro Sérgio Costa Ribeiro trouxeram à tona a chamada Pedagogia da Repetência, o país ainda continua sendo um dos que mais reprovam no mundo. Em 2018, 71% dos docentes continuam acreditando que é bom para a formação do aluno que ele repita o ano, caso tenha recebido notas baixas. Além disso, o contexto global aponta para grandes transformações na organização da educação, que se torna um processo cada vez mais disseminado fora da escola.

No século XXI, como previu o pesquisador português Rui Canário, a educação deixa de ser refém da escola e passa a acontecer em muitos outros ambientes sociais, presenciais e virtuais. Os educadores são profissionais de importância indiscutível, sobre o qual se assentam todas as esperanças de um mundo melhor. Assim, também se ampliam as possibilidades de atuação do educador, que precisa rever as bases de suas convicções para que possa participar sem temores do processo de reskilling vivido por todas as categorias profissionais. Nesse caso, sim, é hora de cada professor aceitar o conselho de Dweck e refletir sobre seu próprio mindset. E por que não?

Para saber mais

Pesquisa Talis. Disponível em:mod.lk/ed18pens. Acesso em: 9 fev. 2020. 

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Escola: lugar de travessias

Escola: lugar de travessias

Como guiar os jovens para um caminho de bem e de alegria.

A escola é um lugar privilegiado de travessias. Os educadores são testemunhas desse processo que se inicia toda vez que um pequeno ser humano ultrapassa as grandes portas de nossas escolas para começar sua jornada acadêmica, afetiva, social, esportiva etc. Por isso, os docentes são como pontífices: construtores de pontes para incontáveis travessias. 

As crianças chegam às nossas escolas, algumas vezes, ainda sem saber andar direito; há que ensiná-las a correr, ir ao banheiro, dividir os brinquedos, escovar os dentes, esperar a vez e várias outras coisas que fazemos com muita eficiência. O problema parece começar quando as crianças se tornam adolescentes. Em vez de encontrarmos novos seres inquietos e perguntadores, parece que encontramos garotos chatos e desobedientes. Isso nos provoca a pergunta: são eles que perderam a graça e a educação adquirida, ou somos nós que não sabemos o que fazer com suas inquietações e nos tornamos insuficientes para essa desafiante travessia?

A mochila existencial a ser refeita: descobrindo o sentido da vida 

O educador italiano Luigi Giussani, que viveu no século XX, em um interessante livro intitulado Educar é um risco, descreve que a criança até, aproximadamente, os 10 anos aceita como verdadeiro aquilo que os adultos lhe apresentam e guarda esses aprendizados em sua mochila existencial. Mas se o ser humano fosse uma cópia do que lhes é oferecido pelos adultos, não amadureceria. Por isso, em certo momento, que denominamos adolescência, “a natureza dá à criança o instinto de pegar a mochila e de colocá-la diante dos olhos (em grego se diz pro-bállo, origem da palavra ‘problema’). Deve, portanto, tornar-se problema aquilo que nos disseram! Se não se tornar problema, nunca amadurecerá. Uma vez trazida para diante dos olhos, remexe-se dentro da mochila”.

Esse processo é o fundamento do relacionamento educativo. Cada ser que chega ao mundo vai recebendo um conjunto de valores e conhecimentos que irá avaliar e decidir o que lhe parece verdadeiro, correspondente ao que deseja ser e fazer. O papel de seus educadores – e uso essa palavra, aqui, para definir todo adulto com que ele se relaciona – é, em primeiro lugar, reconhecer a importância desse processo sem o qual uma criança não se torna um jovem, nem um adulto. É daqui que nasce o “eu”, a autoria, a originalidade, a peculiaridade irrepetível de cada um como defende Viktor Frankl, genial psiquiatra e neurologista austríaco, que afirmava que o ser humano é “único e irrepetível”. 

Em tempos pós-modernos, em que as margens e os rumos da vida estão cada vez mais fluidos e esmaecidos, esse trabalho essencial exige um método para que os jovens e adolescentes tracem esse percurso obrigatório a fim de que não sejam ainda adolescentes depois dos 30!

Para todas as vantagens e desvantagens que se colocam contemporaneamente, todas as portas parecem estar abertas, e nossos jovens as abrem utilizando mais o instinto do que a razão. Ora, então qual o grande trabalho a ser feito com eles por meio de cada disciplina? Trata-se de ajudá-los a verificar cada item que está contido na tal “mochila existencial”! Cada disciplina é oferecida para que amadureçam não somente do ponto de vista intelectual, mas também adquiram habilidades e competências que seus conteúdos portam em sua estrutura. Há muitas oportunidades em cada disciplina para ensinar aos jovens sobre como observar, respeitar, dialogar e transformar a realidade. 

Um método para ajudar a entrar na vida: a experiência elementar

Há 24 séculos, Aristóteles afirmava que o ser humano nasce com uma espécie de bússola capaz de indicar aquilo que é bom, belo e verdadeiro. Hoje, chamamos isso de experiência elementar e, sem ela, seria muito arriscado e até mesmo impossível o processo de formação dos jovens. De acordo com o filósofo, tudo que o ser humano faz deriva das suas experiências elementares e pode ser comparado com elas. Assim, a experiência elementar funciona como um direcionador (ou uma bússola) para que a pessoa reconheça aquilo que lhe corresponde ou não. É ela que faz com que nos entristeçamos com a injustiça, o mal, a mentira, o desumano — até mesmo quando somos nós que geramos o mal.

Com base nisso podemos observar que o primeiro papel dos educadores é chamar, insistentemente, os alunos a comparar tudo o que lhe acontece com aquele conjunto de exigências elementares com o qual a natureza o dotou, a fim de que tome decisões mais consistentes e menos instintivas, que se percam menos e, principalmente, vivam menos experiências de depressão. 

Essa estrutura humana consiste em uma espécie de mapa interior com o qual a natureza dotou o ser humano para que não perca tanto tempo patinando em um nada infinito, mas para que suas buscas se deem a partir de um conjunto de premissas orientadas para o bem, isto é, para a felicidade. O filósofo espanhol Julián Marías lembra-nos em sua saborosa obra A felicidade humana, de que sentido e felicidade são duas experiências inseparáveis. Portanto, ter um mapa, uma estrutura humana prévia, não cerceia o viajante; antes, amplia e favorece suas possibilidades de êxito.

Para nós, educadores, ajudar os alunos a comparar o que fazem com a sua “bússola” nos auxilia muitíssimo porque, sem ela, eles nos pediriam indicações de saídas que não devemos dar, ou que não temos para dar, além do que acabaríamos por impor uma visão de mundo. Enfim, sabemos quanto tudo isso é complicado! Mas, ao provocá-los a comparar como se sentem diante do que fazem, a resposta está dentro deles e não em nós. Isso nos torna livres diante das incontáveis questões que surgem e possibilita a eles um método que independe de um guru para que encontrem a melhor resposta.

A importância de uma companhia contra a tristeza

Meus alunos da universidade contam histórias muito dolorosas de seus tempos de Fundamental 2 e Ensino Médio. Descrevem a depressão profunda, o medo e a dor agravados pelo número reduzido de adultos que os ajudassem a, confrontando a realidade com seus desejos mais profundos, descobrir o que é bom, belo e verdadeiro. A quem eles poderiam pedir ajuda? O educador é um adulto que costuma ter várias possibilidades de estar no lugar certo e na hora certa para fazer essa ponte. Mesmo assim, o fato misterioso que nos consola é que, a despeito dessa carência de “construtores de pontes”, os jovens acabam por encontrar pequenas companhias, amigos, palavras, gestos, frases que fazem com que saiam dos lugares difíceis que habitam e a vida volta a começar.

Se não fizermos isso, naquele espaço que cada disciplina oferece, nos diversos encontros que a escola proporciona, os caminhos da depressão, da violência, da indisciplina expressarão a ausência desse trabalho. As doenças surgem como gritos disfarçados de nossos jovens que fazem um discurso do “qualquer coisa pode e vale”, mas que, ao viverem dessa forma, se sentem esmagados e sem saída.

“Aristóteles afirmava que o ser humano nasce com uma espécie de bússola capaz de indicar aquilo que é bom, belo e verdadeiro.”

Caros mestres, o que mais tenho aprendido com meus alunos é que a vida, quase compulsivamente, volta a começar, se refaz, se reconstrói de onde e como não esperamos. Mas se os ajudarmos nesse trabalho, isso ocorre mais depressa e sem tanto sofrimento.

Certa vez, à noitinha, estávamos estendidos no chão de terra do barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou um companheiro correndo e mandou-nos depressa para a área de chamada da turma, apesar de toda a nossa fadiga e do frio lá fora, só para não perdermos uma visão magnífica do pôr do sol. Vimos, então, o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate sangue, contrastando pouco mais abaixo com os desolados barracos cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu incandescente. (frankl, Viktor. Em busca de sentido. São Paulo: Vozes, 2017).

A vida vale a pena sob quaisquer circunstâncias

A epígrafe acima, extraída do imperdível livro Em busca de sentido, descreve como mesmo mergulhados no mal e destruídos pelo cansaço e pela fome os prisioneiros não deixaram de sair do barracão para ver um pôr do sol. Ora, o que isso indica? Que mesmo nas situações mais trágicas, violentas, difíceis, a pessoa ainda deseja a beleza e o bem porque lhe são inextirpáveis. O adulto é aquele que não esquece isso. Daí que repropõe, infinitamente, a todos os seus alunos e aos particularmente mais difíceis essa “volta para casa”. Essa é a tarefa essencial da educação: ajudar os jovens a compararem aquilo que fazem com o seu desejo de bom, belo e verdadeiro. Porque, assim, paulatinamente, vão encontrando o sentido para a vida. Se ele não o encontra, nada, nem estudo, nem família, nem namoros, nem conforto ou lazer, nada faz valer a pena a vida. Ao ser humano não foi dada a possibilidade de viver sem um sentido. A nós, educadores, cabe a companhia do percurso.

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As crianças chegam às nossas escolas, algumas vezes, ainda sem saber andar direito; há que ensiná-las a correr, ir ao banheiro, dividir os brinquedos, escovar os dentes, esperar a vez e várias outras coisas que fazemos com muita eficiência. O problema parece começar quando as crianças se tornam adolescentes. Em vez de encontrarmos novos seres inquietos e perguntadores, parece que encontramos garotos chatos e desobedientes. Isso nos provoca a pergunta: são eles que perderam a graça e a educação adquirida, ou somos nós que não sabemos o que fazer com suas inquietações e nos tornamos insuficientes para essa desafiante travessia?

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Esse processo é o fundamento do relacionamento educativo. Cada ser que chega ao mundo vai recebendo um conjunto de valores e conhecimentos que irá avaliar e decidir o que lhe parece verdadeiro, correspondente ao que deseja ser e fazer. O papel de seus educadores – e uso essa palavra, aqui, para definir todo adulto com que ele se relaciona – é, em primeiro lugar, reconhecer a importância desse processo sem o qual uma criança não se torna um jovem, nem um adulto. É daqui que nasce o “eu”, a autoria, a originalidade, a peculiaridade irrepetível de cada um como defende Viktor Frankl, genial psiquiatra e neurologista austríaco, que afirmava que o ser humano é “único e irrepetível”. 

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Para todas as vantagens e desvantagens que se colocam contemporaneamente, todas as portas parecem estar abertas, e nossos jovens as abrem utilizando mais o instinto do que a razão. Ora, então qual o grande trabalho a ser feito com eles por meio de cada disciplina? Trata-se de ajudá-los a verificar cada item que está contido na tal “mochila existencial”! Cada disciplina é oferecida para que amadureçam não somente do ponto de vista intelectual, mas também adquiram habilidades e competências que seus conteúdos portam em sua estrutura. Há muitas oportunidades em cada disciplina para ensinar aos jovens sobre como observar, respeitar, dialogar e transformar a realidade. 

Um método para ajudar a entrar na vida: a experiência elementar

Há 24 séculos, Aristóteles afirmava que o ser humano nasce com uma espécie de bússola capaz de indicar aquilo que é bom, belo e verdadeiro. Hoje, chamamos isso de experiência elementar e, sem ela, seria muito arriscado e até mesmo impossível o processo de formação dos jovens. De acordo com o filósofo, tudo que o ser humano faz deriva das suas experiências elementares e pode ser comparado com elas. Assim, a experiência elementar funciona como um direcionador (ou uma bússola) para que a pessoa reconheça aquilo que lhe corresponde ou não. É ela que faz com que nos entristeçamos com a injustiça, o mal, a mentira, o desumano — até mesmo quando somos nós que geramos o mal.

Com base nisso podemos observar que o primeiro papel dos educadores é chamar, insistentemente, os alunos a comparar tudo o que lhe acontece com aquele conjunto de exigências elementares com o qual a natureza o dotou, a fim de que tome decisões mais consistentes e menos instintivas, que se percam menos e, principalmente, vivam menos experiências de depressão. 

Essa estrutura humana consiste em uma espécie de mapa interior com o qual a natureza dotou o ser humano para que não perca tanto tempo patinando em um nada infinito, mas para que suas buscas se deem a partir de um conjunto de premissas orientadas para o bem, isto é, para a felicidade. O filósofo espanhol Julián Marías lembra-nos em sua saborosa obra A felicidade humana, de que sentido e felicidade são duas experiências inseparáveis. Portanto, ter um mapa, uma estrutura humana prévia, não cerceia o viajante; antes, amplia e favorece suas possibilidades de êxito.

Para nós, educadores, ajudar os alunos a comparar o que fazem com a sua “bússola” nos auxilia muitíssimo porque, sem ela, eles nos pediriam indicações de saídas que não devemos dar, ou que não temos para dar, além do que acabaríamos por impor uma visão de mundo. Enfim, sabemos quanto tudo isso é complicado! Mas, ao provocá-los a comparar como se sentem diante do que fazem, a resposta está dentro deles e não em nós. Isso nos torna livres diante das incontáveis questões que surgem e possibilita a eles um método que independe de um guru para que encontrem a melhor resposta.

A importância de uma companhia contra a tristeza

Meus alunos da universidade contam histórias muito dolorosas de seus tempos de Fundamental 2 e Ensino Médio. Descrevem a depressão profunda, o medo e a dor agravados pelo número reduzido de adultos que os ajudassem a, confrontando a realidade com seus desejos mais profundos, descobrir o que é bom, belo e verdadeiro. A quem eles poderiam pedir ajuda? O educador é um adulto que costuma ter várias possibilidades de estar no lugar certo e na hora certa para fazer essa ponte. Mesmo assim, o fato misterioso que nos consola é que, a despeito dessa carência de “construtores de pontes”, os jovens acabam por encontrar pequenas companhias, amigos, palavras, gestos, frases que fazem com que saiam dos lugares difíceis que habitam e a vida volta a começar.

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“Aristóteles afirmava que o ser humano nasce com uma espécie de bússola capaz de indicar aquilo que é bom, belo e verdadeiro.”

Caros mestres, o que mais tenho aprendido com meus alunos é que a vida, quase compulsivamente, volta a começar, se refaz, se reconstrói de onde e como não esperamos. Mas se os ajudarmos nesse trabalho, isso ocorre mais depressa e sem tanto sofrimento.

Certa vez, à noitinha, estávamos estendidos no chão de terra do barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou um companheiro correndo e mandou-nos depressa para a área de chamada da turma, apesar de toda a nossa fadiga e do frio lá fora, só para não perdermos uma visão magnífica do pôr do sol. Vimos, então, o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate sangue, contrastando pouco mais abaixo com os desolados barracos cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu incandescente. (frankl, Viktor. Em busca de sentido. São Paulo: Vozes, 2017).

A vida vale a pena sob quaisquer circunstâncias

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