8 passos para contar histórias e engajar a turma

8 passos para contar histórias e engajar a turma

Como o ato de contar histórias pode transformar a sua sala de aula em um espaço colaborativo e criativo com grandes resultados de aprendizagem. 

Ilustração Ricardo Davino 

Era uma vez, uma história. Quem não se encanta por elas? Histórias são parte de nossas vidas e se manifestam em diferentes formatos: nos registros produzidos em paredes de cavernas – a chamada arte rupestre –, nas histórias de ninar, nos contos de fadas, na literatura, nas fábulas, nas novelas, nos filmes e nos seriados. As histórias estão também na conversa, no diálogo entre amigos que contam um ocorrido, num álbum de família, numa propaganda, nos arquivos pessoais de um grande gênio da humanidade ou de um indivíduo comum. Já deu para entender que storytelling tem tudo a ver com histórias, né? Mas quando falamos sobre utilizar essa técnica na educação, não estamos tratando apenas de fazer a leitura de um livro e mostrar suas ilustrações aos estudantes. Storytelling vai muito além. Vamos descobrir?

Descobrindo um novo mundo 

Storytelling trata de contar histórias, aliás, mais que isso: trata-se de contar boas histórias. Essa técnica – já utilizada pelas mídias e pelo entretenimento por meio do cinema e da publicidade, por exemplo – pode ser aproveitada também no âmbito educacional pelos professores. Vamos pensar juntos: Qual é o objetivo de uma propaganda de televisão? Entre tantas outras propagandas, além de vender o produto, quer chamar a atenção de quem assiste. Para isso, recursos como cores, sons, imagens, histórias envolventes e a própria linguagem são explorados para gerar emoções e conexões, mantendo o telespectador engajado na mensagem transmitida. A Coca-Cola, por exemplo, é uma das marcas que mais aplicam com sucesso a técnica do storytelling em suas propagandas, especialmente aquelas de Natal que visam emocionar e passar uma mensagem de esperança e bem-estar a quem assiste (mod.lk/ex_coca). O mesmo ocorre com filmes, seriados e novelas: entre cenas de ação, humor e drama, muitas histórias são contadas e construídas, gerando emoções diversas em quem acompanha, ganhando a atenção plena de quem está do outro lado da tela. Não se engane ao pensar que a técnica pode ser utilizada apenas em comerciais. O storytelling pode ser usado em apresentações de trabalho, de projetos, de propostas, em planejamentos, com o objetivo de explicar um conceito, ilustrar uma emoção, apresentar resultados, convencer, conquistar, inspirar e, principalmente, engajar.

Grandes storytellers e seus segredos  

Há alguns indivíduos que se destacaram e mudaram suas vidas por serem grandes storytellers e por utilizarem isso ao seu favor, seja para transmitir sua mensagem, para compartilhar uma causa, para expandir seus negócios ou para se tornar reconhecido em alguma área do conhecimento. É o caso de Steve Jobs, Martin Luther King Jr., Bill Gates e Malala Yousafzai, que nos deixam algumas lições exploradas no livro Storytelling: Aprenda a contar histórias com Steve Jobs, Papa Francisco, Churchill e outras lendas da liderança, de Carmine Gallo:

STEVE JOBS Storytellers inspiradores são eles mesmos inspirados e compartilham o seu entusiasmo com o seu público.

MARTIN LUTHER KING JR. Grandes storytellers se tornam, não nascem assim. Aproveitam as oportunidades para aperfeiçoar suas habilidades de falar em público e de inspirar espectadores.

BILL GATES Quebre expectativas. Quando as pessoas acham que sabem o que vem adiante, surpreenda. Crie histórias inesperadas, chocantes ou surpreendentes. 

MALALA YOUSAFZAI Conte histórias com o coração. Uma boa história pode levar alguém às lágrimas; uma história magnífica pode dar início a um movimento.

A jornada do herói  

O modelo a seguir, também disponibilizado no livro de Carmine Gallo, foi compartilhado por Austin Madison, um animador e criador de storyboards de vários filmes da Pixar, como Ratatouille e Toy Story 3. Em uma apresentação, Austin compartilhou os 7 passos que os filmes da Pixar seguem e que têm como objetivo dar à plateia alguém por quem torcer:

Era uma vez um _________________. (O protagonista/herói)

Todo dia ele _________________. (O mundo desse herói é um mundo comum, cotidiano)

Até que um dia _________________. (Toda história atraente tem um conflito, um desafio para o herói) 

Por causa disso _________________. (Uma série de esforços vão acontecer e se conectar em sequência com a cena seguinte – como se tudo fosse se encadeando)

Por causa disso, _________________. (Outras cenas que são conectadas com as anteriores e as seguintes.) 

Até que finalmente _________________. (O clímax – o triunfo do bem sobre o mal)

Desde então _________________. (A moral da história) 

Agora, veja o exemplo aplicado ao filme Star Wars a partir da história do personagem Luke Skywalker: 

Era uma vez um menino de fazenda que queria ser piloto.

Todo dia ele ajudava na fazenda. Até que um dia sua família é assassinada. 

Por causa disso, ele se junta ao lendário Jedi Obi-Wan Kenobi. 

Por causa disso, contrata o contrabandista Han Solo para levá-lo a Alderaan. 

Até que finalmente Luke alcança seu objetivo e torna-se piloto de guerra e salvador da pátria. 

Desde então, Luke está a caminho de se tornar um cavaleiro Jedi. 

Um exemplo prático  

No meu caso, como professora de História, usei alguns elementos da Jornada do Herói (existem vários modelos para se contar uma história, a Jornada do Herói é uma das possibilidades) para chamar a atenção dos meus estudantes sobre uma temática pouco atraente para a maioria deles: as Cruzadas. Para esse tema, uni duas ferramentas: o storytelling para abordar o assunto e conquistar sua atenção e o Google Maps para aprofundamento e uma experiência de aprendizagem mais significativa. De forma resumida, iniciei a aula em círculo com um bate-papo sobre grupos de pessoas que percorriam, em expedições, longas distâncias, correndo todo o tipo de perigo, desde a fome até doenças para libertar locais sagrados pelos cristãos do domínio islâmico. Algumas pessoas do grupo acreditavam que, ao completarem a jornada, uma mistura de peregrinação com guerra, teriam seus pecados perdoados. 

Conforme a história se aprofundava, íamos abordando outros objetivos das Cruzadas e suas características, e muitas perguntas surgiam: “eles eram loucos?”, “Quantos dias eles andavam?”, “Eles iam morrendo pelo caminho?”, “Que distância eles percorreram?” Era o que bastava para convidar a turma à pesquisa. Em equipes, os alunos jogavam os dados que tínhamos disponíveis no Google Maps e descobriam a distância percorrida em cada Cruzada – com um paralelo ao mapa do mundo atual. De repente, eu ouvia: “professora, você não vai acreditar! Na primeira Cruzada, se a gente fizesse no Brasil saindo lá da pontinha do Rio Grande do Sul, a gente teria que andar até a Bahia! Por que eles faziam isso?! Como eles aguentavam?”. Bem, a partir daí, o casamento entre o storytelling e o uso de ferramentas digitais foi o suficiente para que a aprendizagem das Cruzadas fosse um tema mais relevante, significativo e proveitoso para a turma e eu poderia dar sequência a outras coisas interessantes que veríamos juntos sobre aquele período.

Outro exemplo na minha trajetória como professora foi uma série de arquivos fictícios e pessoais dos tempos da Segunda Guerra Mundial que criei a partir do conteúdo que trabalharia. Era uma turma de Ensino Médio e, num primeiro momento, imaginei que, devido à idade e à fase de vida, os alunos não se interessariam e minha ideia iria por água abaixo. Ledo engano: pessoas amam histórias e desafios. 

Cortei algumas folhas de papel sulfite, derramei café nelas e deixei que secassem de um dia para o outro. Resultado: folhas marrons, parecendo papel antigo. Juntei restos de papel kraft, papel cartão preto e alguns envelopes de carta. O próximo passo foi a definição dos meus personagens: os “donos” dos arquivos. Assim fiz: duas amigas judias se escondendo com suas famílias; pai e filho alemães, sendo o filho soldado do exército; esposa e marido japoneses, sendo ela enfermeira em guerra, e outros. Escrevi à mão algumas cartas curtas, todas com datas do período entreguerras. Na internet, consultei cartões-postais antigos com imagens da França e da Europa em geral, para simular cartões enviados por correspondência. Também imprimi selos de carta da época e colei nos envelopes. Para as cartas mais longas, escrevi no Word, utilizando a fonte Courier New (semelhante à fonte de máquinas de escrever, para manter a sensação de ser algo antigo) e juntei alguns objetos que pareciam antigos. 

Cada equipe ganhou um arquivo e teve de ler, analisar as datas, as informações e descobrir a relação entre o remetente e o destinatário, descobrir o período em que viviam, o que contavam, no que trabalhavam, enfim, uma simulação ao trabalho de pesquisa de um historiador, que tem de lidar com documentos não lineares e que não trazem todas as informações. Ao final, cada equipe apresentou seus personagens e contou suas histórias baseando-se na documentação disponibilizada. Hoje, já adultos, quando os alunos daquela turma me encontram, afirmam: “professora, nunca mais esqueci o que estudamos sobre a Segunda Guerra Mundial e o que aconteceu naquele período”. Tudo porque estudamos um período tão importante, com histórias “reais” em pano de fundo. 

Como começar o storytelling? 

Agora você deve estar se perguntando: quais lições um educador storyteller pode dar a outro educador que quer explorar essa técnica? Como professora de História e, consequentemente, mas não acidentalmente, uma contadora de histórias, compartilho algumas sugestões:

① Pense de forma interdisciplinar. Todas as áreas do conhecimento estão conectadas; a matemática, a geografia, a história, as linguagens, a arte, a educação física, a química – no universo, não há gavetas separando os temas. Conectar a sua temática com outra área ajuda a dar sentido e demonstrar a relação entre o cotidiano e o que está sendo explorado. Numa receita de bolo, a matemática (quantidades) e a química (fermentação) podem se juntar e se transformar em uma história que envolve a vida cotidiana, algo palpável, concreto.

Vejamos um exemplo.

“Pessoal, vocês não imaginam o que aconteceu comigo ontem! Estava muito feliz pelo aniversário do meu sobrinho que fez 18 anos, então me inspirei, tomei coragem e fiz algo que nunca faço: um bolo! Peguei uma receita qualquer na internet, às pressas e sem perceber que as quantidades não estavam fazendo muito sentido. Ao final percebi que havia colocado pouca farinha, muitos ovos e muito fermento. Imaginem o resultado! O bolo ficou com um aspecto estranho e como usei muito fermento, que tem sua reação causada pela temperatura e que só para quando todo o fermento reage, o bolo crescia sem parar! Eu me lembrei da importância das frações na cozinha, seja para não comer comida salgada demais, para não desperdiçar ou mesmo para não causar essa catástrofe que foi o meu bolo de aniversário. Depois de tudo isso, vamos aprender a fracionar e perceber o quanto utilizamos isso no nosso dia a dia?” 

② Domine o conteúdo. Para contar histórias, saiba bem do que está falando. Depois, pense em situações que podem ser reais (a biografia de um ícone daquela área), pessoais (quando você mesmo vivenciou e tirou uma lição) ou criadas (quando você conta situações envolvendo uma história). 

③ Use e abuse de elementos atraentes. Pense em todos os elementos e ferramentas necessários à sua história para torná-la mais relevante. Você pode incluir seus alunos como personagens, sua cidade, a escola; pode inserir algum cantor, uma celebridade, alguém muito conhecido na cidade; pode eleger uma música-tema e usar ferramentas simples do cotidiano da turma como gifs, memes, vídeos, imagens, enfim, o que puder ilustrar esse momento ou partes da história. 

④ Use sua voz. O tom de voz mais baixo indica a sensação de suspense, de contar um segredo. Isso atrai a atenção dos estudantes para o que vem a seguir. Além disso, um tom de voz mais alto indica ânimo, energia, e se utilizado para enfatizar momentos, destacar falas e indicar sensações como a de susto torna a história mais envolvente.

⑤ Ilustre com objetos reais: Antes de falar sobre frações, você pode levar alguns objetos e pedir à turma que divida, some ou multiplique, por exemplo. Em vez de chegar em sala de aula afirmando: “Turma, hoje vamos estudar o Egito Antigo”, apresente imagens de tumbas, das pirâmides, da esfinge, do Egito hoje, ilustrações de Cleópatra e outros ícones egípcios. Faça hipóteses antes de você entrar de vez na temática.

⑥ Avalie com storytelling. Que tal pensar na avaliação utilizando o storytelling? Crie um personagem que precise de ajuda e, a cada questão respondida, o estudante chega mais perto de salvá-lo do mal. 

⑦ Crie zines. Zines são a abreviação de fanzines, muito utilizados por produtores culturais de pequena circulação. São pequenos livros feitos com papel sulfite e que podem ser utilizados como cartões, biografia, livros com histórias curtas, cartões com resumos de conteúdos, etc.

⑧ Desperte a criatividade com ferramentas digitais. Uma boa forma de trabalhar storytelling como aliado no desenvolvimento da competência 4 da BNCC – a comunicação –, são as histórias em quadrinhos, exercitando a expressão a partir de uma variedade de linguagens e plataformas, utilizando a criatividade. Você pode lançar o desafio para os seus alunos através de ferramentas como o Storyboard That (www.storyboardthat.com/pt), o Strip Generator (www.stripgenerator.com) e o Make Beliefs Comix (www.makebeliefscomix.com). Com essas ferramentas digitais, os alunos podem contar sua própria história, a história de um grande cientista, de um escritor ou resumir uma história literária. Além disso, a turma pode sintetizar o conteúdo visto ou trazer curiosidades adicionais sobre a temática estudada.

Nossa história está chegando ao fim, mas para ajudar você, professor, a perceber a importância de conquistar a atenção dos seus estudantes e propiciar uma aprendizagem cada vez mais significativa, finalizo este breve roteiro com uma fala do especialista em Neuroeducação, Francisco Mora, em seu livro Neuroeducación: solo se puede aprender aquello que se ama, publicado em 2013: “A curiosidade, o que é diferente e se destaca no entorno, desperta a emoção. E, com a emoção, se abrem as janelas da atenção, foco necessário para a construção do conhecimento” (p. 66).

 

Emilly Fidelix

é professora há 12 anos, tendo trabalhado com turmas de Educação Infantil ao Ensino Superior. É historiadora, doutoranda em História Global (UFSC) e Especialista em Tecnologias, Comunicação e Técnicas de Ensino (UTFPR). Também é criadora da página no Instagram @seligaprof na qual explora temas como tecnologias e metodologias ativas.

 

PARA SABER MAIS 

  • GALLO, C. Storytelling: Aprenda a contar histórias com Steve Jobs, Papa Francisco, Churchill e outras lendas da liderança. São Paulo: Alta Books, 2018.
  • MORA, F. M. Neuroeducación: Solo se puede aprender aquello que se ama. Madrid: Alianza Editorial, 2017. 

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Formação de professores frente a um currículo em movimento

Formação de professores frente a um currículo em movimento

Como garantir que os professores estejam inseridos nas constantes transformações dos currículos escolares em um contexto tão complexo quanto o brasileiro?

Por Miguel Thompson

A educação brasileira está prestes a enfrentar um de seus maiores desafios. Estimativas apontam que, até 2023, quase metade dos professores estarão em idade de se aposentar. Isso corresponde a cerca de 1,2 milhões de profissionais com potencial de sair da carreira docente. Isto somado à grave crise de qualidade da educação brasileira, traz a pergunta: quem assumirá as salas de aula? A despeito da complexa situação, seria importante pensarmos a aposentadoria dos professores como uma oportunidade para aproveitar as vivências desses profissionais sêniores para o estímulo, preparação e formação de novos docentes. Dessa forma, a principal crise, a da qualidade em educação, poderia ser estrategicamente equacionada, formando profissionais melhor preparados para os novos tempos, sem perder de vista o imenso capital intelectual e experiencial que os professores em processo de aposentadoria podem compartilhar. Este modelo de transição já tem sido adotado em países com ótimo desempenho educacional e tem garantido a qualidade a longo prazo.

Um dos grandes problemas no processo de formação de professores está na incapacidade de atrair os melhores alunos para a profissão. Lembremos que antes dos anos 60, as famílias de elite tinham orgulho de ter entre seus filhos, médicos, advogados, padres e professores. No entanto, nos últimos 50 anos, houve uma progressiva desvalorização da profissão docente. O processo de universalização da educação pública passou a demandar mais profissionais do que o sistema educativo poderia formar com a qualidade desejada e aconteceu uma rápida depreciação salarial dos professores.

Uma profunda preocupação com a formação docente tem sido pauta entre os especialistas. O Plano Nacional de Educação (PNE), em vigor desde 2014, apresenta propostas de melhoria da formação docente, que envolvem temas importantes como a organização curricular, o planejamento letivo, a necessidade de renovação continuada (pesquisa e programas de pós-graduação), a remuneração e os modelos de planos de carreira. A legislação vigente conta com uma clara orientação de melhoria salarial para os próximos anos, mas, fato é que ainda recebemos menos que profissionais de outros setores com a mesma qualificação. Ao analisar os números da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), divulgada pelo IBGE, percebemos que os salários de professores estão crescendo, em média, acima da inflação, e num ritmo superior ao verificado entre os demais trabalhadores com diploma universitário. Isso significa que a distância entre os profissionais que dão aulas em escolas está diminuindo em relação a outras carreiras com formação universitária. Mas, infelizmente, o ritmo de melhoria dos salários ainda é insuficiente para cumprir a meta do PNE.

Formação inicial

Além de tentar atrair os melhores estudantes para a carreira docente, o Conselho Nacional de Educação, em 2015, baixou uma resolução (Resolução 2/2015 – CNE) com orientações vistas como essenciais para a formação de um professor preparado para as transformações do mundo. Assim, o CNE e as faculdades firmaram um compromisso com a qualidade docente desde os primeiros passos acadêmicos. Vamos debater alguns desses pontos e discutir como pode ser pensada a formação dos professores para o século XXI:

1Sólida formação teórica e interdisciplinar 

Uma sólida formação teórica é fundamental para se exercer uma docência de qualidade que atenda as demandas atuais. Sem a capacidade de observar o mundo pelo prisma dos modelos conceituais construídos ao longo da história da humanidade, é quase impossível ser um bom docente. Um professor alfabetizador deve conhecer as principais teorias de alfabetização e letramento para fazer suas escolhas teóricas e metodológicas de acordo com as necessidades dos estudantes e os contextos de sala de aula. O mesmo se aplica para as outras especializações e disciplinas. O profissional contemporâneo deve ter domínio sobre o conhecimento específico que irá ministrar, mas é importante ressaltar que isso não é suficiente para dar boas aulas e construir o aprendizado junto aos alunos. Não se pretende um biólogo ou um físico em sala de aula, mas professores de Biologia e Física que saibam fazer a transposição do conhecimento específico para que ele se torne significativo para todos os estudantes. Aqui, o conhecimento didático e o desenvolvimento dos alunos agrega-se à formação em disciplinas específicas, produzindo uma prática diferente daquela existente em laboratórios de pesquisa ou indústrias, construindo assim a especificidade da ação docente.

Outro ponto a destacar é a necessidade de o professor saber dialogar com distintos campos do saber para poder correlacionar conceitos específicos a outras áreas do conhecimento. Isso é necessário porque o entendimento e a resolução dos problemas reais é muito mais complexa do que a forma como são organizadas as disciplinas escolares. Eventos econômicos (crise econômica de 2008), questões ambientais (mudanças climáticas) ou crises sociais (como os fenômenos migratórios na Europa ou as manifestações sociais brasileiras de junho de 2013) só podem ser interpretadas à luz de diversos conhecimentos disciplinares. Pensando nisso, formaremos jovens mais criativos e inovadores, capazes de usar um repertório de diferentes áreas na resolução de problemas. Em geral, formar um professor com excelente conhecimento específico e amplo espectro de movimentação em diferentes áreas é vital para a formação de jovens inovadores e preparados para um mundo em constante mudança.

Unidade teoria-prática

Transpor um conteúdo específico para a sala de aula é traduzir conceitos em uma linguagem acessível e adequada para a faixa etária e sociocultural daquele contexto escolar. A capacidade de usar analogias, metáforas e exemplos do universo do estudante é fundamental para trazer significado ao que se ensina. Sem essa interação não se constrói conhecimento significativo. Como é possível uma criança lembrar mais de 100 nomes diferentes de Pokémons e não lembrar a capital de um país ou o nome do rio que corre na sua cidade? A educação se dá, na verdade, em um processo de interação entre os conhecimentos formais da escola e o cotidiano do aluno, repleto de ideias espontâneas baseadas em suas experiências. Quanto mais próximo um do outro, mais fácil transformarmos o enorme potencial da mente dos estudantes em uma realidade geradora de novos conhecimentos. É nessa constante interação entre a teoria e a prática, ou seja, entre o que deve ser ensinado de acordo com os currículos oficiais e a realidade vivida pelo estudante, que se constrói o processo educativo. O professor deve ser um investigador, imaginando o currículo a ser ensinado como uma hipótese a ser testada. Os objetivos instrucionais devem aparecer como um planejamento de um experimento, que ocorrerá em sala de aula ou em toda interação educativa. A partir das respostas dos alunos, novos planos de aula são elaborados, em um contínuo investigativo da relação teoria-prática, visando o desenvolvimento máximo daqueles alunos, naquela situação e naquele contexto. Em um mundo de transformações, a teoria deve servir como um apoio importante, mas não pode ser tratada como um catecismo imutável. É na interação com a sala de aula, no registro do professor e na reflexão sobre essa prática que se constrói um projeto educativo que leva em consideração as mudanças no espaço e no tempo, sempre com foco nas necessidades reais dos estudantes. De acordo com a resolução 2/2015 do CNE, isso se dá pensando “a docência como ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem entre conhecimentos científicos e culturais, nos valores éticos, políticos e estéticos inerentes ao ensinar e aprender, na socialização e construção de conhecimentos, no diálogo constante entre diferentes visões de mundo.” Para que a interação entre teoria e prática funcione, não se pode mais evitar as novas tecnologias. O uso das mídias sociais é fundamental para o professor conectar os estudantes em rede, incentivar o trabalho colaborativo e de cocriação, estimular a comunicação a distância e realizar pesquisas individuais na internet, induzindo também um processo customizado de formação. É por meio das ações sugeridas, associadas ao pensamento crítico, que aproximaremos o docente das novas tecnologias, não oferecendo dispositivos eletrônicos de maneira descontextualizada e sem projetos educacionais robustos. Neste sentido, a gravação de aulas com celulares, por exemplo, permite que o professor utilize as novas tecnologias (TICs), analise individualmente e receba feedbacks que seguramente o ajudarão no aperfeiçoamento do processo educativo e no aprimoramento da prática docente. Por fim, a aproximação dos centros formadores de professores com as escolas deve ampliar a presença do futuro professor na sala de aula, transformando o estágio em uma ferramenta real de formação, reflexão e aquisição de elementos da prática docente.

Trabalho coletivo e interdisciplinar

Se antigamente planejar era um trabalho individual, hoje é irreal imaginar um projeto educativo cujos planos didáticos sejam elaborados por um professor solitário, fechado em sala de aula, em uma interação exclusiva com sua classe. Preparar o planejamento do curso coletivamente, atuar em grupo e refletir com seus pares as melhores estratégias devem ser práticas da escola contemporânea. Comunicar essa prática e incluir os estudantes nesse processo é fundamental para formar os jovens do século XXI. É por homologia de processos, isto é, reproduzindo o que viveu na escola, que se desenvolve o conhecimento e se estimula as práticas dos futuros cidadãos. Não há mais espaço para os profissionais que não sabem trabalhar em grupo. Do plano à ação, da avaliação à gestão da sala de aula, é essencial que se crie o hábito de trabalhar aos pares ou em grupos. Assistir a aula do colega para posterior feedback é uma ferramentas eficiente de melhoria da ação docente. O trabalho coletivo deve, portanto, ser tratado como um valor a ser compartilhado com os estudantes. Uma das características dos novos tempos é a colaboração em massa e os jovens produzem bem desta maneira. Os cientistas trabalham assim há séculos, publicando suas pesquisas e recebendo sugestões de seus colegas. Projetos recentes como o Genoma Humano, que sequenciou todo DNA de nossa espécie, recebeu contribuições coletivas de cientistas de todo o mundo. As empresas vêm usando esse potencial de inteligência coletiva para produzir novos produtos e serviços, como os aficionados por LEGO, que geram novos produtos para a empresa, ou mesmo grupos de consumidores de carros da BMW, que participam coletivamente da discussão e elaboração de novos projetos. Os agrupamentos de jovens, por sua vez, já produzem fenômenos coletivos, como festivais de cultura POP (Comic Con, evento de quadrinhos e séries de TV, por exemplo) ou disputas em estádio de finais de campeonatos de games (League of Legends). No processo de construção coletiva do projeto educativo, os próprios estudantes são fonte de grande valia. Pela primeira vez na história, os jovens acumulam um determinado tipo de conhecimento superior ao acumulado do mundo adulto. É o caso dos usos das novas tecnologias ou conhecimentos gerados pela cultura digital, como os canais de youtubers. O educador contemporâneo deve usar esses valores para seu aprendizado e para desafiar e se aproximar de seus alunos. Interagir com diferentes pontos de vista pode evitar erros e preconceitos inerentes a nossa formação. É no diálogo com o grupo que surgem as melhores aulas. Reconhecer que sabemos pouco sobre algo ao dialogarmos com outros especialistas, além de nos trazer novos conhecimentos, nos faz mais humilde frente aos alunos, que terão contato com toda a gama de conhecimento curricular daquela série. Se nem nós sabemos a maioria dos conteúdos, por que obrigamos os jovens saberem tudo nas avaliações? O diálogo interdisciplinar ressignifica nossos conteúdos, aproxima diferentes conceitos para a resolução de problemas e demonstra aos alunos que, para interpretar o mundo, são necessários diversos tipos de conhecimentos.

Compromisso social e valorização do educador

Já falamos aqui sobre contextualização e complexidade. Nada nos parece mais importante que estabelecer conexão entre o conhecimento escolar e a sociedade, visando a mudança da realidade. Em uma nação com tantos problemas sociais como o Brasil, é muito importante o compromisso do professor com a transformação. Seja em relação às melhorias das condições de vida, seja com uma maior atuação na comunidade e/ou no ambiente. Em um mundo globalizado e com 7 bilhões de pessoas não é mais possível imaginar apenas o desenvolvimento individual dos estudantes. É preciso planejar cursos que os preparem para a série de problemas urbanos, sociais e ambientais que eles herdarão. Assim, engajar o professor nos problemas de seu tempo é engajar os estudantes no seu próprio projeto de vida. Usar exemplos do entorno, da cultura local ou fenômenos mundiais emergentes para estimular a reflexão crítica com modelos de conhecimento escolar e de experiências dos estudantes aproxima o que se aprende na escola com a realidade, permitindo o uso dos conteúdos escolares como ferramenta de entendimento e intervenção no mundo. É também a partir dessa conexão com os contextos reais que as famílias se aproximarão da escola. É no debate sobre temas atuais e relevantes da vida familiar, que os pais entenderão que a escola não existe apenas para formar um jovem para um futuro abstrato, mas está também a serviço da contemporaneidade. É nessa entrada do conhecimento escolar no cotidiano das casas que ocorrerá a valorização do professor e a adequação do conhecimento às emergências do mundo atual.

Fomação continuada e pesquisa

Reiteramos que a única certeza que temos é a mudança. Nos novos cenários muitas funções sociais desaparecerão, como ocorreu com o datilógrafo, por exemplo. Mas, em contrapartida, novas profissões surgirão sem que nem imaginemos. Quem diria há 10 anos que ser blogueiro, youtuber ou gamer seriam profissões nos dias de hoje? Dessa forma, conhecimentos e práticas de hoje podem ser obsoletos em pouco tempo. Não se trata de ampliar nossa ansiedade em busca de cursos de uma forma que prejudique nossa qualidade de vida, mas devemos levar em consideração que precisaremos estudar ao longo de toda nossa vida. Seja para atualizar metodologias, seja para prepararmos nossos alunos de maneira adequada e significativa. Acompanhar as mudanças coletivas, sociais, acadêmicas e tecnológicas será cada vez mais um diferencial na profissão e também uma obrigação. De agora em diante, cada vez mais grupos de interesse criarão conteúdo nas mídias sociais. Questões socioambientais, éticas, estéticas e relativas à diversidade étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional e sociocultural circularão em grupos organizados e deverão ser objeto de apreciação da escola, do professor e do plano de aula. Aproximar temas emergentes dos conceitos formais escolares será fundamental para contextualizar e trazer significado ao ambiente escolar, exigindo constante estudo, investigação e pesquisa do professor.

Autoconhecimento e formação integral

Para terminar, é imprescindível lembrar que o profissional contemporâneo deve desenvolver um compromisso com seu autoconhecimento e sua formação integral. Não somos apenas organismos cognitivos, e os novos tempos exigem uma integração maior entre mente, corpo, sociedade e ambiente. Vivemos como se vivêssemos em um mundo fragmentado, onde as pessoas, os organismos e os sistemas operassem de forma independente. Mas, na realidade, nossas relações são interdependentes e sistêmicas, portanto complexas. Saber o que não sabemos, buscar nos outros conhecimentos complementares, entender o que nos afeta coletivamente, o que são e como as habilidades socioemocionais (tão exigidas nos dias de hoje) devem ser levadas em consideração e o que devemos desenvolver e estimular nos estudantes, serão questões ainda mais relevantes para o desenvolvimento do professor como indivíduo e como profissional.

Miguel Thompson

É Doutor em Oceanografia pela USP e atua como Diretor da Fundação Santillana*. É autor de livros didáticos pela Editora Moderna e foi professor do ensino básico por 25 anos. 

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Reformas curriculares: adequando a educação ao novo mundo

Texto Miguel Thompson

A escola contemporânea se organizou em disciplinas escolares, herdeiras do movimento Enciclopedista do século XVIII, baseado na organização do conhecimento acadêmico. De certa forma, os currículos escolares domesticaram a cultura com programas hierarquizados e conceitos rigidamente interligados a serem transmitidos aos alunos. Assim, conhecimentos de fora do meio acadêmico, obtidos pela experiência dos jovens com seu entorno e com forte tradição popular, foram abandonados pelo processo de ensino. Esse discurso hermético, de definições, conceitos e modelos, além de não dialogar com os educandos, não tem sido capaz de explicar o mundo para os jovens: um conhecimento fechado apenas à escola e para a escola. Preocupados com a progressiva distância da educação escolar com o mundo, alguns países promovem reformas curriculares para transformar a educação em um processo mais significativo para os jovens e efetivo para a resolução de problemas, em um mundo dinâmico e complexo. Os currículos tradicionais, ainda sob forte influência da Revolução Industrial e da verticalização conceitual, vêm sendo modificados, deslocando a centralidade disciplinar para o aprendizado, a compreensão e a resolução de problemas. Com base nas ideias de Kant, utilizadas por Piaget para o desenvolvimento da sua teoria do conhecimento, não se pretende mais um conhecimento em que os estudantes sejam uma tábula rasa, meros repositórios de informações. As vivências dos jovens, suas experiências e as rápidas transformações do mundo contemporâneo passaram a ser vetores importantes para a elaboração de políticas públicas educacionais. O dinamismo do mundo atual e a velocidade com que novos conhecimentos são sistematizados, nem sempre associados ao meio acadêmico, exigem que os currículos escolares passem a ser mais porosos ao mundo e interativos com os conhecimentos prévios dos jovens.  Por outro lado, saber individualmente o que pensam os estudantes sobre cada tópico é pouco factível em salas de aula lotadas. Como abarcar o conhecimento dos jovens, interagir com os conteúdos escolares e produzir sínteses efetivas para o desenvolvimento estudantil? Abordar os processos socioculturais contribui decisivamente para construir uma escola mais contextualizada e significativa. A cultura jovem deve ser parte integrante do planejamento escolar, como forma de trazer o imaginário dos jovens e aproximá-los dos saberes escolares, enriquecendo as aulas com novos conhecimentos vindos deles.

 

Puberdade e Adolescência

 

Partindo de uma premissa construtivista, é importante entender o desenvolvimento dos jovens. A puberdade é o processo de transformação fisiológica, anatômica e psíquica que marca a passagem da infância para a juventude. É um fenômeno comum para todos os seres humanos, embora seja diferente para cada sexo biológico. Já a adolescência é um fenômeno histórico, sociocultural, localizado no tempo e no espaço. Ao contrário dos estereótipos sobre a juventude, pode-se afirmar que existem várias adolescências, determinadas por diversidade de grupos, atitudes, comportamentos, gostos, valores, filosofias de vida, níveis econômicos e regiões.  Nem sempre se considerou a adolescência como uma fase do ciclo de vida. A Organização das Nações Unidas (ONU) delimita a adolescência à faixa que vai de 10 a 20 anos. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) descreve essa fase entre os 12 e os 18 anos. Mudanças culturais e socioeconômicas vêm estendendo essa faixa até cerca de 30 anos, seja pela diminuição do número de filhos na família, ampliando o foco de atenção dos pais aos filhos, seja por questões econômicas, que obrigam o jovem adulto a viver com a família original por mais tempo. De qualquer forma, o status de adolescência como uma fase formal do ciclo de vida foi definido no início do século XX, a partir dos estudos do psicólogo Stanley Hall.

 

A adolescência ao longo da história

 

A adolescência sempre foi uma preocupação da sociedade, apenas não era considerada uma fase diferenciada, como a infância e a vida adulta. Na Grécia Antiga, a imagem mitológica de Eros era a representação ora de uma criança na forma de anjo, ora de um adolescente, descrito como mimado e irascível, a distribuir sentimentos passionais para aqueles que flechava. Em muitos relatos, é possível identificar as relações conflituosas entre Eros e outros deuses. Nada diferente do estereótipo que temos dos adolescentes de hoje. Havia uma preocupação também do contato entre jovens e adultos. A famosa condenação de Sócrates foi decorrente da acusação de o filósofo degenerar os mais jovens com suas ideias e comportamento. Muitas são as culturas e religiões que possuem cerimônias ou rituais que demarcam a passagem da infância para a juventude e do jovem para a vida adulta. Na Idade Média, o sistema feudal exigia que as crianças trabalhassem assim que desenvolvessem autonomia, sendo tratadas como adultos em miniatura, sem que houvesse uma ideia de juventude.  Shakespeare foi um dos primeiros escritores a descrever uma forte reação dos jovens contra as tradições dos adultos em Romeu e Julieta. Romeu tinha 17 anos, e Julieta, 13.  O movimento Romântico (séc. XVIII-XIX) apresenta características típicas dos jovens adolescentes, como o subjetivismo, a idealização, o sentimentalismo, o egocentrismo (culto ao eu interior), o escape psicológico (nostalgia da infância e a idealização de um passado medieval), a necessidade de liberdade de criação, o pessimismo (protagonistas com profunda tristeza, angústia, solidão, inquietação, desespero). O romance Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, foi proibido e acusado de incentivar o suicídio entre os jovens – preocupação parecida com a recente série televisiva 13 reasons why (13 razões porquê) e com o suposto “Jogo da Baleia Azul”. A ideia de indivíduo passa a ser cada vez mais fomentada pela associação do Romantismo com a filosofia liberal. Nesse período, surge o Romance de formação, em que se descrevem as agruras do processo de desenvolvimento da juventude, com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Obras como As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, e Harry Potter, de J. K. Rowling, são herdeiros dessa tradição. A cultura jovem deve ser parte do planejamento, como forma de trazer o imaginário dos jovens e aproximá-los dos saberes escolares. O século XIX é repleto de literaturas focadas na adolescência. Os irmãos Grimm pesquisaram contos com adolescentes como protagonistas, em rituais de passagem para a vida adulta. A partir da tradição oral, compilaram as histórias de Branca de Neve, Rapunzel e Cinderela. Uma versão moderna é a empoderada Elsa, de Frozen, muito mais adequada para as adolescentes feministas atuais.  No final do século XIX, uma icônica referência foi a do poeta Arthur Rimbaud, que produziu toda sua poesia enquanto era adolescente, abandonando a produção literária aos 20 anos. Sua foto adolescente é uma das mais conhecidas representações de juventude do Ocidente. Nessa época, inicia-se o ideal de juventude como desejo da sociedade. Oscar Wilde escreveu O Retrato de Dorian Gray, em 1890, representando um jovem que jamais envelhecia. O século XX foi uma grande ode à adolescência. Com o processo de urbanização e a revolução industrial acelerada no século XIX foi preciso intensificar a formação dos jovens para o mundo do trabalho, massificando a educação e os agrupando em faixas etárias, como nas linhas de montagem. Por outro lado, milhares de jovens morreram na Primeira Guerra Mundial, ampliando nas famílias o desejo de proteger e de dar mais atenção a seus filhos. A urbanização, as aglomerações urbanas, a locomoção mais rápida com o advento do automóvel e outras mudanças culturais aproximaram os jovens, que passaram a construir um rápido processo de imaginário coletivo. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o advento da bomba atômica, uma revolta contra o mundo adulto passa a tomar conta de parte da população jovem. James Dean pode ser visto como uma espécie de Rimbaud/Dorian Gray, sendo a encarnação dessa “juventude transviada”. O rock’n’roll passa a ser um mantra entre os adolescentes urbanos, vindo dos Estados Unidos, contaminando todo mundo ocidental, com um forte apelo ao consumo, principalmente pela rápida popularização da televisão. Foi possível o desenvolvimento de uma cultura juvenil pelo amplo processo de escolarização dos jovens e pelo retardamento da entrada destes na vida adulta, passando a ter mais tempo para interagir com colegas de mesma idade, sem uma pauta de produtividade. Movimentos culturais como os beatniks e contracultura hippie dos anos 1960 foram o coroamento da centralidade do jovem no mundo contemporâneo. Dos discursos identitários sessentistas vieram o feminismo, o movimento LGBT, a luta antirracista, o movimento ambiental e o ativismo político. Hoje, não é difícil encontrar estudantes que se identificam com alguma dessas causas.   A ideia da adolescência como fase de vida é uma construção que vem se consolidando socialmente em especial nos últimos 200 anos, não como um comportamento único, mas plural, com diferentes grupos identitários que podem se agrupar em tribos urbanas modernas e que se bem compreendidas podem ajudar no planejamento do processo de ensino-aprendizagem, contribuindo para uma passagem menos conflituosa.

 

A cultura jovem no Brasil

 

Conhecer a cultura jovem, identificar entre os alunos esses grupos culturais e intermediar o conhecimento formal com a cultura de massa é uma boa estratégia para dar maior significado ao conhecimento em qualquer disciplina. Para muitos conteúdos, seja pela característica ou pelo contexto dos períodos em que os conhecimentos foram formalizados, conectar a cultura juvenil ao conteúdo escolar pode despertar a curiosidade e o engajamento no processo individual e coletivo de aprendizado. Em 2018, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em uma ação extremamente arrojada, inseriu em sua lista de preparação para o vestibular o álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC, grupo de rap com ampla penetração entre os jovens. Mais do que estudar para o vestibular, a Unicamp aponta que a cultura jovem é um conhecimento a ser considerado pela escola. São muitos os diferentes campos da cultura pop que podemos conhecer e utilizar nos planos de aula. Veja alguns exemplos:

O rock

Há uma farta produção bibliográfica e cinematográfica sobre o rock no Brasil, suas origens e penetração como força cultural. Uma boa dica é assistir ao filme biográfico de Erasmo Carlos, Minha Fama de Mau. O filme aborda principalmente a formação e a consolidação da cultura juvenil no Brasil entre 1950 e 1960. O rápido processo de urbanização e estratificação social do período, a expansão da classe operária e da classe média. Essa base de mudanças abriu espaço para o desenvolvimento de uma cultura de consumo.

O sertanejo

A migração da música caipira, profundamente enraizada no mundo rural, para o meio urbano, fundindo-se com o iê-iê-iê da Jovem Guarda, deu origem à música sertaneja. Há muitas variações do ritmo, como o sertanejo universitário, voltado para um público jovem e caracterizado pelo afastamento do cenário e dos valores da tradição rural. As temáticas exploram a importância do dinheiro, o universo das baladas, as conquistas amorosas, os namoros rápidos e a “sofrência”.

O funk no brasil 

O funk brasileiro vive há quase duas décadas entre extremos de aceitação e repúdio. As músicas são executadas milhões de vezes no Youtube e no Spotify. O ritmo surgiu nos anos 1960 como expressão da cultura negra norte-americana e chegou ao Brasil nos anos 1970, principalmente no Rio de Janeiro e em menor expressão em São Paulo. Executado em bailes comandados por DJs, rapidamente foi assumindo uma cultura particular, com seus MCs. Um dos principais influenciadores do funk no Brasil foi o antropólogo Hermano Vianna, como objeto de pesquisa acadêmica. Aqui, a Academia foi em busca da cultura popular.

O geek e o nerd

A Comic Con e a Campus Party são dois dos eventos mais importantes da cultura geek e nerd. Só no Brasil, cerca de 300 mil jovens visitam a Comic Con, onde é exposto o que se tem de mais relevante na cultura de quadrinhos, cinema, televisão e games. Acompanhar as notícias ou participar desses eventos nos dá um bom upgrade sobre essa cultura. Há uma intensa ressignificação desses jovens consumidores. A partir de seriados de televisão como The Big Bang Teory e Silicon Valley, bem como a exposição constante de ícones da tecnologia como Steve Jobs e Bill Gates, muitos jovens passaram a apreciar essa cultura; o antigo CDF tornou-se cool, não mais o típico jovem a sofrer bullying. Passa a ser um estilo de vida construído a partir do consumo e das novas concepções de juventude e de trabalhador ideal para o mundo da quarta revolução industrial. Uma junção de cultura do entretenimento e da tecnologia passa a definir identidades juvenis.  O jovem de hoje valoriza a diversidade de ideias e culturas e busca mais participação em atividades sociais e cívicas de seu entorno. A escola precisa representar esse espaço de múltiplos diálogos. 

O ativista

Os anos 60 foram ricos em manifestações políticas da juventude. Muitas dessas causas se expressam hoje nos jovens do Ensino Básico. Entender esses movimentos ajuda a preparar nossos planejamentos da maneira mais significativa para os estudantes. Movimentos como o de junho de 2013 tiveram origem no protesto de jovens contra o aumento de passagem de ônibus urbanos. Em poucas semanas o país foi tomado pelo movimento, que ampliou suas pautas e tornou-se mais complexo. Em uma linha similar de movimentação de jovens, menos politizada, mas também de grande importância, podemos colocar os rolezinhos que ocorreram no final de 2013 e em parte de 2014, quando jovens de classe média baixa se espalharam por todo Brasil, passeando em grupos em vários shoppings a que comumente não tinham acesso e nem eram bem-vindos. As ocupações das escolas públicas foram um misto de rolezinhos com as jornadas de junho de 2013, pelo ato de ocupação e pela ação política. O processo de organização dos protestos gerou uma dinâmica de organização coletiva que forjou novas relações sociais, tanto entre os estudantes, como entre eles e os professores e as direções das escolas. A ideia de grêmios escolares geridos horizontalmente, sem relações hierárquicas, foi um dos pontos-chave do movimento. Em pouco tempo escolas de São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná e Espírito Santo foram ocupadas. Nesses movimentos, as meninas tiveram um papel preponderante. Paralelamente às ocupações estudantis, vimos as jovens brasileiras se apropriarem de um debate político e feminista com camisetas com os dizeres “Lute como uma garota” pelas escolas. É importante destacar os recentes movimentos feministas como o #MeToo dos Estados Unidos que fala contra o abuso masculino e se posiciona a favor dos direitos das mulheres.

 

Em síntese

 

A nova geração das múltiplas culturas tem um comportamento global, com grande afinidade à diversidade, em que muitos participam de atividades cívicas. São colaboradores naturais, prezando a liberdade de escolha e tendem à personalização das coisas, uma geração que sai de um comportamento passivo frente à televisão para uma interação constante com as mídias digitais. Ao contrário das gerações passadas, querem se divertir, seja na escola, seja em movimentos cívicos ou no trabalho, o que não retira deles a responsabilidade pela entrega com qualidade. Vivem em um mundo veloz e aceitam a inovação como elemento natural da vida. O modelo fabril do século XX vai sendo substituído pelo ateliê do artesão, o estúdio do artista, a oficina de consertos ou, por que não, em um grande salão de festas. 

Para saber mais

  • Campos, A. J. M.; Medeiros, J.; Ribeiro, M. M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016. 
  • Carr, N. A geração superficial: o que a Internet está fazendo com nossos cérebros. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
  • Pinheiro-Machado, R. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.
  • Prensky, M. Enseñar a nativos digitales. UE: Ediciones SM, 2011.
  • Rocha, C. Popular e perseguido, funk se transformou no som que faz o Brasil dançar. Disponível em: nexojornal.com.br. Acesso em: 6 jan. 2020. 
  • Santos, P. M. dos. O Nerd virou cool: consumo, estilo de vida e identidade de uma cultura jovem em ascensão. Dissertação de Mestrado: Universidade Federal Fluminense, 2014.
  • Schoen-Ferreira, T. H.; Aznar-Farias, M.; Silvares, E. F. de M. Adolescência através dos séculos. Psicologia: Teoria e Pesquisa. abr.-jun. 2010, v. 26, n.2, pp. 227-234.
  • Tapscott, D. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a Internet estão mudando tudo, das empresas aos governos. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010.
  • Zimmermann, M. Erasmo Carlos e sua fama de mau: o rock e a cultura juvenil no Brasil (1950-60). Disponível em: mod.lk/ed18pano. Acesso em: 10 fev. 2020.

Miguel thompson é Doutor e Mestre pelo Instituto Oceanográfico da USP. Autor de livros didáticos e de difusão científica, foi professor do Ensino Básico por 25 anos. Atua como consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é presidente do conselho editorial da Revista Educação e diretor acadêmico da Fundação Santillana. — De acordo com a Lei 9.610/98 é proibida a reprodução total ou parcial desta website, em qualquer meio de comunicação, sem prévia autorização.

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Pesquisa TIC Educação 2018 destaca a importância do educador como mediador para uso de tecnologias, mas falta formação estruturada para isso.

Texto Portal Porvir

Aprender sozinho é o principal caminho encontrado pelos alunos na hora de usar tecnologia. Apenas para 44% dos estudantes de escolas urbanas, os professores são considerados fonte de informação sobre o tema. Antes de recorrer ao apoio dos educadores, eles trocam informações com amigos, parentes ou até mesmo buscam vídeos e tutoriais disponíveis na internet. Os dados são da TIC Educação 2018, divulgada em julho pelo CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), por meio do Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação) do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR). Para investigar o acesso, o uso e a apropriação das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) nas escolas públicas e particulares brasileiras de ensino fundamental e médio, a pesquisa entrevistou presencialmente, em escolas urbanas, 11.142 alunos de 5º e 9º ano do ensino fundamental e 2º ano do ensino médio, 1.807 professores de Língua Portuguesa, de Matemática e que lecionam múltiplas disciplinas (anos iniciais do ensino fundamental), 906 coordenadores pedagógicos e 979 diretores. Nas escolas rurais, foram ouvidos 1.433 diretores ou responsáveis pela escola. “Mesmo não sendo a principal referência para os alunos (na busca por conhecimento em tecnologia), os professores são mediadores para o uso das tecnologias”, disse Daniela Costa, coordenadora da pesquisa TIC Educação. Segundo ela, os educadores já são reconhecidos pela maior parte dos alunos de escolas urbanas públicas e particulares como validadores do conteúdo encontrado na internet, seja na hora de comparar informações em sites diferentes, para indicar sites ou produzir trabalhos. Diante dos riscos à privacidade e de perigos on-line, assumir papel de mediador não significa saber menos que o estudante. Para a consultora Maria da Graça Moreira da Silva, docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultora do Instituto Natura, os educadores devem trazer uma intenção pedagógica clara para fazer o uso desses recursos digitais. “Os alunos normalmente sabem usar as tecnologias com os seus colegas para jogar, conversar ou acessar WhatsApp e Instagram, mas isso não significa que eles sabem aprender por meio de tecnologias”, disse a consultora.

 

Formação de professores em tecnologia

 

Quando o assunto é tecnologia, a tendência de aprender sozinho também ganha força entre os educadores. De acordo com a pesquisa, 90% dos professores afirmaram que aprenderam sozinhos a usar as tecnologias. Nos últimos três meses anteriores à realização da pesquisa, 76% dos professores participaram de cursos sobre tecnologia, especialmente sobre como melhorar sua prática e ajudar alunos a fazer uso seguro delas. Daniela Costa, do NIC.Br, ressaltou, no entanto, que ainda faltam maneiras mais estruturadas para formar professores, seja nas escolas públicas ou particulares. Na formação inicial, o contato de tecnologia acontece de forma desigual dependendo da área de conhecimento do professor. Enquanto 58% dos professores de Matemática disseram ter cursado disciplina específica para tecnologia, apenas 42% de Língua Portuguesa dizem ter passado pela mesma experiência. “Existe uma tendência de a tecnologia estar mais presente nas áreas de ciências exatas, mas eu diria que as políticas públicas enfrentam um grande desafio, porque a tecnologia é aliada em todos os campos do conhecimento. Não obstante as escolas já estejam conectadas e alunos em posse de tecnologias, os professores ainda trazem essa falha na formação”, disse Alexandre Barbosa. A TIC Educação revela que, em 2018, 64% dos professores até 30 anos tiveram a oportunidade de participar, durante a graduação, de cursos, debates e palestras sobre o uso de tecnologias e aprendizagem promovidos pela faculdade, assim como 59% realizaram projetos e atividades para o seu curso sobre o tema. Por mais que tenham buscado aprimorar seus conhecimentos na internet ou com colegas, apenas 30% dos professores realizaram algum curso de formação continuada. No momento da realização da entrevista 30% das escolas particulares participaram de alguma iniciativa do tipo, enquanto que, entre as públicas, esse número era menor: 21%. “O papel do gestor escolar é muito importante. Não basta ter infraestrutura e vontade do professor se os responsáveis pelos programas de formação não estimularem e criarem as condições necessárias para que esse processo de formação continuada se estabeleça”, afirmou Leila Iannone, coordenadora da pesquisa.

 

Cidadania digital e uso seguro dos dados

Além de apoiar os alunos na apropriação das ferramentas, a formação também é fundamental no que diz respeito ao uso seguro e consciente da tecnologia. Entre os educadores, 38% afirmam terem apoiado algum aluno a enfrentar situações como bullying, discriminação, assédio ou disseminação de imagens sem consentimento na internet. A proteção de dados também é um assunto que ganha destaque na comunidade escolar. Entre os coordenadores pedagógicos entrevistados, 59% deles afirmaram que buscaram cursos, palestras e fontes de informação sobre a disseminação de dados dos alunos e da escola na internet. Quando o assunto é segurança, os alunos reconhecem que recorreram aos professores para buscar auxílio sobre uso seguro da internet (48%) e receberam orientações para comparar informações em diferentes sites (51%).

Conectividade

Assim como nos levantamentos anteriores, quase que a totalidade das escolas urbanas (98%) conta com um computador conectado à internet. Em 2018, apenas 12% das escolas públicas tinham uma conexão de banda larga de 11 Mbps ou mais rápida, enquanto que esse cenário já era percebido em 42% das escolas privadas. O acesso ao wi-fi também continua baixo entre os estudantes. Apenas 16% dos alunos de escolas urbanas afirmaram ter permissão para uso da rede sem fio.

 

Para saber mais

TIC Educação 2018: mod.lk/ticedu18 Especial

Tecnologia na Educação (Porvir): mod.lk/porvirtc

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A hora e a vez do steam na sala de aula

A hora e a vez do steam na sala de aula

Débora Garofalo - Colunista

Débora Garofalo - Colunista

Projetos inovadores e em grupo vão além de investimentos: são uma mudança de atitude.

Texto Débora Garofalo

A metodologia steam (do inglês Science, Technology, Engineering, Arts e Mathematics) foi criada nos Estados Unidos na década de 90, a partir de pesquisas e avaliações que registravam um desinteresse dos alunos pelas ciências exatas. A metodologia ou abordagem pedagógica, baseada em projetos, integra áreas e tem por objetivo formar pessoas com diversos conhecimentos e diferentes habilidades. Por isso, casa perfeitamente com as exigências da Base Nacional Comum Curricular (bncc), ao desenvolver competências e habilidades socioemocionais que preparam os alunos para os desafios futuros. As atividades guiadas na metodologia steam permitem resolver problemas ao conectar ideias que parecem desconectadas, ajudando a “pensar fora da caixa”, beneficiando o aprendizado interdisciplinar e trazendo os estudantes para o centro do processo cognitivo. O professor atua como responsável pela mediação e apoio às equipes, exercendo a colaboração para que a turma aprenda durante todo o processo de forma integrada e coletiva. A adoção do steam prevê um conjunto de conhecimentos técnicos essenciais para despertar a criatividade, a empatia, o humanismo e o desenvolvimento de tendências como o pensamento computacional e a cultura maker. Nas escolas brasileiras, o steam tem potencial transformador ao aumentar o protagonismo do aluno, incentivar a inovação e a colaboração, fortalecendo o processo de ensino e aprendizado. Segundo os dados do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (pisa), 2015, entre os 70 participantes, o Brasil é o 63o colocado em Ciências e o 66o em Matemática, sendo emergencial que sejam revistos o processo de aprendizagem e as práticas docentes para reverter essa situação. A chave para o sucesso de uma educação inovadora é criar um ambiente que permita a participação dos atores envolvidos, para que conheçam e que contribuam, dando-lhes a sensação de pertencimento e autoria. Não existe um modelo pronto para aplicar e a mudança de atitude deve partir de todos para alcançar uma aprendizagem significativa e envolvente, quebrando velhos paradigmas e ambientes pouco propícios.

As diferenças entre steam e stem

Além da diferença na nomenclatura — pela inclusão de Arte, que tem a concepção de melhorar o desempenho escolar, o senso estético e crítico, tornando a lógica matemática mais humana —, podemos dizer que o termo stem trata de como fazer e o steam incentiva a descoberta do porquê realizar em cinco etapas: 1 Investigar; 2 Descobrir; 3 Conectar; 4 Criar; 5 Refletir.

Ambas metodologias permitem aos alunos vivenciar e experienciar o pensamento científico e crítico de maneira interpretativa e reflexiva, por meio da ludicidade e ou projetos interdisciplinares que podem ser aplicados desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, em todas áreas do conhecimento.

A importância do steam no contexto escolar

O steam, em consonância com a bncc, tem foco no desenvolvimento de habilidades essenciais ao século xxi. As atividades baseadas na metodologia devem ser planejadas para que os alunos se sintam desafiados e trabalhem de forma colaborativa, compreendendo o seu projeto e buscando alcançar conhecimentos e habilidades de forma interativa e autônoma. Dessa forma, o steam dialoga e facilita o desenvolvimento das 10 competências da bncc. A abordagem steam favorece a aprendizagem por experimentação por meio de metodologias ativas, em que o aluno tem a oportunidade de lidar com situações e problemas de forma criativa, sem perder o foco investigativo. O ambiente é fundamental e deve ser inspirador e facilitador, porém, não é suficiente para proporcionar a aprendizagem. O professor deve estabelecer objetivos claros e integrar as áreas para que a aprendizagem ocorra. É necessário também que os projetos contemplem a educação ambiental pautada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a fim desenvolver colaboração, reflexão, ética e empatia, trazendo esses pontos para o centro da discussão. Os ODS são uma coleção de 17 metas globais estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. O steam permite viabilizar, por exemplo, projetos a baixo custo com materiais alternativos, como sucata, de maneira sustentável e dentro da sala de aula.

Aplicando o steam na prática

Por ser baseada na aprendizagem criativa e em tendências educacionais como programação, robótica, inteligência artificial etc., a metodologia steam pressupõe a investigação científica, o trabalho por projetos e o movimento maker. Assim, a adoção do modelo deve partir inicialmente da intencionalidade do professor, mas deve-se ouvir os estudantes e sistematizar essa escuta para aplicar o steam nas aulas.

  • 01 – Valorize o espaço de aprendizagem. O espaço de aprendizagem é o lugar para aceitar o desconhecido, reconhecer o erro e trabalhar colaborativamente. Deve ser regulado por dois valores: segurança e respeito. Os alunos e professores devem priorizar uma convivência harmoniosa e produtiva, cuidando uns dos outros, do espaço e de si mesmo. Ao saber qual a atitude necessária para o trabalho no ambiente, as intervenções docentes fazem sentido para o aluno. O professor deve ser um mediador que permita aos alunos aprender pela experiência, prezando a relação humana e a horizontalidade. A hierarquia se dá por reconhecimento e não por autoridade. Busca-se a autonomia a partir da empatia, criando vínculo com os alunos, reconhecendo o contexto de cada um, descobrindo o que tem sentido e significado para eles. Ao ampliar seu horizonte de conhecimento, o estudante ganha autoconfiança e segurança para ousar e propor novas soluções.
  • 02 – Transforme conceitos em aulas práticas. O professor deve olhar para o currículo e possibilitar aos alunos, por meio da resolução de problemas, trabalhar de forma prática, permitindo que testem suas hipóteses com ações mão-na-massa (learning by doing), unindo os conceitos das diversas áreas do conhecimento para resolver o desafio proposto.
  • 03 – Crie oficinas. Para iniciar essa abordagem em sala de aula, realize uma oficina com a turma dividida em grupos. Leve um problema relacionado ao conteúdo trabalhado e proponha que viabilizem a solução de maneira prática. Vale manusear materiais simples de sucata e fazer questões norteadoras e provocativas para que os alunos se envolvam nas atividades.
  • 04 – Problematize. As perguntas são essenciais para avançar nas hipóteses e para o docente mediar a aprendizagem. Esse momento pode gerar debates e intervenções para instigar os grupos a encontrarem caminhos diversos. O desafio tem de ser interessante, sem respostas prontas, permitindo espaço para imaginação e criatividade para produzir, testar e refazer. Ao final, sistematize os conhecimentos para que os alunos se sintam motivados a compartilhar aprendizados com um debate ou apresentação.
  • 05 – Planejamento. Estabeleça roteiros e parcerias com a turma já que a proposta é realizar um projeto integrado, com etapas definidas, pesquisa e produção e testes de aplicação.

  • 06 – Foque na integração de conhecimentos e traga problemas reais. Na hora da prática, é essencial equilibrar conhecimentos das cincos áreas. Defina o contexto e parta de desafios reais para que os alunos possam atuar na sociedade ou se envolverem com problemas do entorno da escola, aplicando conceitos ao propor soluções.
  • 07 – Trabalhe com habilidades socioemocionais. O steam é um propulsor para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais por permitir que atividades sejam desenvolvidas em grupos, em que os papéis podem e devem ser revisados. As atividades devem ter objetivos claros e abordar novas maneiras de articular o currículo proposto para desenvolver competências como empatia, colaboração e criatividade.

Atitudes que transformam

Convidamos Andrea Barreto, professora da rede municipal do Rio de Janeiro e coordenadora do Núcleo do Rio de Janeiro da Conectando Saberes, para contar duas experiências práticas que mostram como a metodologia steam pode ressignificar de forma simples e coletiva a aprendizagem. 

Steam no Fundamental 1. Certa vez, quando eu lecionava para o 9o ano de uma escola, a professora do 4o ano me procurou com uma preocupação. Os alunos dela perguntavam se a borboleta “nascia da lagarta ou da minhoca”. Pergunta fantástica! Ela esclarecia que era da lagarta, mas um grupo jurava que viu uma “minhoca se transformar em borboleta”. Chegamos à conclusão de que seria ótimo realizar uma experiência com as crianças. Para ajudá-la, coletei algumas lagartas, que se transformariam em casulos, e coloquei, com algumas folhas, em uma caixa de sapatos sem o tampo, que substituí por uma rede de filó. Pedi para ela levar as minhocas com a terra. Orientei-a para não fazer grandes comentários e falar que queria ver se alguma “minhoca” se transformaria em borboleta. Ao mostrar para a turma, um dos meninos falou logo que “aquelas minhocas não eram do tipo certo” e ela pediu que eles trouxessem o tipo certo. Assim foi feito. 

Nos dias seguintes, a turma fazia e anotava as observações e colocavam mais folhas para as lagartas. “Por que mais folhas?” — se perguntavam. “Pode ser qualquer folha?”; “E a minhoca não come?”. Com o incentivo da professora, pesquisas, anotações e compartilhamentos comprovaram que as minhocas não comem terra. Passamos a pesar o pote semanalmente. “Tem mais terra?”; “Não é cocô de minhoca?”. Vejam o quanto está sendo trabalhado: observação, linguagens, matemática, competências socioemocionais como respeito, resiliência, liderança, tudo a partir de um desafio teimoso de um grupo de alunos. 

Um dia, os casulos apareceram e a turma ficou eufórica. Os alunos não paravam de perguntar e fui até a sala para responder algumas perguntas. “Está tudo morto, professora?”; “Acabou”? A essa altura, a escola toda sabia do nosso projeto. Alguns dias depois, as borboletas apareceram. Soltamos em uma manhã de risadas, pulos e lágrimas. “Nossas lagartas irão embora!”. No fim, anotaram as conclusões e nós atingimos vários objetivos, entre eles o de vivenciar o steam na prática. 

Steam no Fundamental 2. Em uma turma do 7o ano, os alunos entraram na sala falando sobre o livro Cem dias entre Céu e Mar (Amyr Klink), que a professora de Língua Portuguesa estava lendo com eles. Eu só ouvia: “O cara remou muito!” – dizia um. “Nada, foram as correntes marinhas!” – retrucava outro. Daí se seguiu a discussão sobre o que eram as tais correntes marinhas. Eu tentava começar a minha aula – que seria sobre célula –, mas a turma estava alheia e logo percebi que era melhor seguir a maré e abordar as tais “correntes marinhas”. 

Pedi para tentarem me explicar como se formavam as correntes e anotei no quadro. “São os ventos!”; “É a rotação da Terra!”; “É a Lua!”; “É a inclinação da Terra!” – eles me diziam. Anotei tudo. Dividi a turma em equipes e pedi para cada equipe provar sua teoria. Eles anotaram a hipótese escolhida e foram em busca das respostas. Na aula seguinte, cada equipe apresentou o que tinha coletado e o que ficou na cabeça de todos foi a diferença de temperatura.

Usei animações feitas na internet para explicar a diferença dos movimentos das moléculas na água quente e fria: algo muito pouco palpável e complicado de se explicar. Eles me diziam que na água quente as moléculas se “movimentam mais” que na fria, porém não se convenciam. Lancei o desafio: “Vocês têm certeza do que estão falando? Provem!”

Estimulei que montassem uma experiência para provar a diferença entre o movimento das moléculas. Pedi para trazer o passo a passo por escrito e reunimos o material: água quente e gelada, copos de vidros iguais, anilina azul e vermelha (as cores foram escolhidas por eles). Na aula seguinte, montamos a experiência. Falei para observarem. Eu enchi os copos de água quente e o restante cada equipe fez.

Um copo com água quente e outro com água gelada na mesma quantidade, duas gotas de anilina em cada copo – na água quente, a vermelha e na fria, a azul –, colocadas ao mesmo tempo, e silêncio absoluto na sala. Eles não sabiam se riam ou se falavam ao mesmo tempo. Pedi para cada equipe relatar o que aconteceu. Na água quente, a anilina se misturou rápido. Na fria, não. Mostrei as animações. Conversamos, interagimos e concluímos a experiência. 

Nesses dois casos, percebemos que não foram necessários altos recursos para aplicar o steam. Em ambos, levantou-se perguntas feitas pelos estudantes que poderiam ser respondidas rapidamente pelo professor. Ressignificar o processo é levar em conta que aprender só faz sentido se encantar o aluno. Deixe-os errar e questione com eles o que deu errado. Faça a mediação, mas não deixe que eles parem de perguntar. Se o aluno pergunta, é o momento de ensinar. 

É preciso explorar novas abordagens na educação, mediando o espaço entre o aluno e a informação, de forma participativa, envolvente e interativa, próxima da realidade no processo de construção e reconstrução do seu conhecimento ao trabalhar com as diversas facetas do processo de aprendizagem. Com soluções criativas, é possível reinventar a educação. 

Débora Garofalo  é professora da rede pública de Ensino de São Paulo. Formada em Letras e Pedagogia, mestranda em Educação, colunista de Educação inovadora no blog Redes Moderna e finalista do Prêmio Global Teacher Prize.

Para saber mais

  • Agenda 2030 – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável:
    https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/

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Como levar a cultura maker para dentro da sala de aula

Como levar a cultura maker para dentro da sala de aula

Débora Garofalo - Colunista

Débora Garofalo - Colunista

Ultimamente, muitos de nós ouvimos falar sobre o termo “maker”. Mas o que é exatamente isso?

 

Robótica é maker? Programação é maker? Pintura é maker? Eletrônica é maker? Impressora 3D é maker? Marcenaria é maker? Costura é maker?  O que você acha?

 

O movimento maker propôs nos últimos anos o resgate da aprendizagem mão na massa trazendo o conceito “aprendendo a fazer” que, aplicado ao ambiente escolar, tem como objetivo promover e estimular a criação, a investigação e a resolução de problemas pelos alunos, proporcionando um pensamento “fora da caixa”, conectando ideias desconectadas, usando ao máximo, qualquer tipo de recurso. Uma verdadeira oportunidade de reinventar e inovar a educação!

Se procurarmos no dicionário o termo maker, veremos que está relacionado ao “fazer” e por aí podemos ter uma dica: o maker é aquele que faz, que põe a mão na massa. Porém, ser um maker é mais que simplesmente quem faz alguma coisa, está ligado a uma forma de fazer, a uma atitude. E qual atitude seria esta?

 

Ser maker é olhar um problema e elaborar um projeto criativo para resolvê-lo, explorando possibilidades, sendo curioso, resiliente, experimentador. É errar e aprender com os erros. Essas características estão muito presentes em todos nós na infância, porém, apenas alguns conseguem mantê-las na idade adulta.

 
Uma pessoa maker é aquela que, por meio da curiosidade, busca ajuda e tem uma atitude de abertura para troca com outras pessoas. E fundamentalmente, é apaixonado pelo que faz! Se refletir, essas são características que estão muito relacionadas com competências e habilidades que desejamos desenvolver na escola.
 

FILOSOFIA MAKER

 

A cultura maker favorece a aprendizagem por experimentação, ou seja, ao vivenciá-la pelas metodologias ativas, procura tirar o aluno da passividade e trazê-lo para o centro do processo de aprendizagem.

 

E POR ONDE COMEÇAR?

 

Temos visto uma grande preocupação das escolas com a construção de salas dedicadas às atividades “mão na massa”, principalmente com o investimento em máquinas, equipamentos e na adaptação do espaço.

O ambiente tem importância no aprendizado. Ele deve ser inspirador e facilitador, porém, não é suficiente para proporcionar a aprendizagem. Normalmente, ao se criar um espaço maker na escola sem o cuidado de se trabalhar antes com as pessoas envolvidas, paradoxalmente, acontece um afastamento delas ao invés de uma aproximação e integração. Como seres humanos, temos medo do desconhecido e do incomum!

Uma chave para o sucesso na implementação de um projeto inovador é criar um ambiente que permita a participação dos atores envolvidos, para que conheçam e que contribuam, dando-lhes a sensação de pertencimento e autoria. Somos todos criadores e quando o fazemos, geralmente, nos sentimos felizes e realizados. Desta forma, a motivação intrínseca desperta o interesse para a realização de projetos, muitas vezes, tidos como impossíveis!

ESPAÇO MAKER

 

Ao pensar em implementar um espaço maker devemos, antes de começar, nos perguntar o quê queremos com ele e, principalmente, como iremos trabalhar neste espaço.

O lugar deve ser organizado de forma que mesas coletivas fiquem em seu centro e que os recursos como ferramentas, máquinas e materiais sejam dispostos na periferia, acompanhando as paredes.

Se você não possui um espaço maker, não tem problema, saiba que é possível tornar a sua sala de aula mais acolhedora, reorganizando o mobiliário, como por exemplo: agrupar mesas e cadeiras em formato de bancada; reaproveitar madeira de porta e de carteiras velhas; e acrescentar um tripé para formar uma bancada. Assim, você estará criando um ambiente de trabalho participativo e colaborativo para que os estudantes possam exercitar a criatividade.

Lembre-se: as pessoas são o centro do espaço maker. A principal dificuldade que encontramos para implementar um projeto de educação mão na massa na escola é a mudança de cultura necessária em nós, professores. Ser maker é, antes de mais nada, uma atitude!

 

 

O espaço mão na massa é o lugar para aceitar o desconhecido e o erro e para trabalhar colaborativamente, características que não são habituais no nosso dia a dia. Precisamos nos permitir a mudar um hábito arraigado em nós: o papel do professor que se apresenta à frente dos alunos e que instrui muito ao invés de deixar que os alunos aprendam pela experiência. No espaço maker, prezamos a relação humana e a horizontalidade. A hierarquia se dá por reconhecimento e não por autoridade.

Esse espaço é regulado por dois valores: segurança e respeito. Os participantes das atividades devem entender que para uma convivência harmoniosa e produtiva, deve-se sempre cuidar dos outros, do espaço e de si mesmo. Assim, todos sabem qual a atitude necessária para o trabalho no ambiente e, as intervenções fazem sentido para o aluno.

Busca-se sempre a autonomia a partir da empatia, criando vínculo com os alunos, reconhecendo o contexto de cada um, descobrindo o que tem sentido e significado para eles e ajudando a criar um ambiente propício para aprender. Ao ampliar seu horizonte de conhecimento, o aluno ganha autoconfiança e segurança para ousar, conquistando cada vez mais autonomia.

MATERIAIS

 

Para começar, você precisará de ferramentas simples (chaves de fendas, madeira, cola quente, ferro de solda, solda, tesouras, estiletes, fita isolante, furadeira, serrote), materiais eletrônicos (fios, suporte de baterias e ou de pilhas, motores de 6v e 3v – que é possível encontrar em brinquedos quebrados e em computadores sem uso, leds, resistores, jacarés, controladores) e materiais de sucata (papelão, potes, isopor, madeira) e muita imaginação.

No especial Mão na Massa do Porvir traz um simulador maker para você se inspirar e ir estruturando esse espaço. Vale a pena envolver a comunidade e pedir doações.

CRIE SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEM

 

Utilize as metodologias ativas, como resolução de problemas e aprendizagem por projetos, com questões norteadoras:

 

COMECE SIMPLES

 

Desenvolva projetos simples com os estudantes e vá aumentando o nível de dificuldade aos poucos, exercitando o espírito lúdico, a criatividade e a vivência da aprendizagem em torno de um problema.

 

 

Leve materiais de sucata para a sala de aula como potes, papelão, tampinhas, entre outros e eletrônicos como motores, resistores, fios, suportes de baterias. Com esse material, você será capaz de incentivar os alunos a desenvolver projetos mão na massa.

Estabeleça um roteiro de trabalho e faça perguntas para instigar e aguçar a criatividade dos estudantes. Nessas aulas, a sua turma poderá codificar, desvendar o Scratch (software livre e gratuito) ou montar circuitos elétricos simples, assim, dessa maneira, o pensamento maker vai sendo incorporado gradativamente.

Como professor, você pode montar fichas de observação e investigação para que os alunos registrem o aprendizado. A sua intervenção só é feita quando necessária, no processo de mediação.

A aprendizagem mão na massa é simples, mas demanda empenho e esforço para mudança de concepção.

DÊ LUGAR AO ERRO

 

Errar faz parte do processo!

Os estudantes precisam estar envolvidos nas etapas, participando da construção da sua aprendizagem. Eles precisam de espaço para tentar, errar, tentar de novo até acertar.

Falhar faz parte desse processo e o torna significativo, tornando os alunos mais criativos e capazes de resolver problemas com autonomia.

Essas habilidades são importantes para resgatar o encantamento das aulas e desenvolver espírito inovador.

PARA SE INSPIRAR

Que tal colocar a mão na massa em um hackerspace?

Estamos falando de laboratórios comunitários que seguem a filosofia do conhecimento livre, acesso amplo às tecnologias, respeito à privacidade, liberdade, valor social, criatividade e inventividade.

Nos hackerspaces, o destaque vai para o espírito inovador, que atrai pessoas interessadas em colaborar em vários projetos makers e refletir sobre diversos assuntos.

O espaço é um ponto de encontro para quem quer trocar conhecimento e experiências. Clique aqui para localizar o endereço mais próximo a você.

E então?  Robótica, programação, pintura, eletrônica, impressão 3D, marcenaria, costura são atividades maker? Vai depender de como você mediará as atividades…a ferramenta principal de um espaço maker sempre será você!

Um grande abraço,

Débora e Fabio

Débora Garofalo é formada em Letras e Pedagogia, pós-graduada em Língua Portuguesa pela Unicamp e mestranda em Educação pela PUC de SP. É professora de Tecnologias, trabalha com Cultura Digital, Robótica com sucata/livre, programação e animações; e implementação em tecnologias em Escolas Públicas.

Fabio Zsigmond é empreendedor, inovador e cofundador do MundoMaker (www.mundomaker.cc), um espaço de aprendizagem mão na massa em que crianças, jovens e adultos aprendem programação, mecânica, robótica, meditação e trabalho em equipe – baseado na educação integral e no aprendizado por projetos (PBL). É bacharel em ADM pela FGV e atua como diretor voluntário no Projeto Âncora (www.projetoancora.org.br), uma organização sem fins lucrativos, onde os alunos aprendem o currículo sem aulas e através de projetos. Em 2016, viajou 77 dias pelo Brasil a bordo de um Maker Truck levando o acesso a cultura maker para mais de 500 professores e 2000 alunos vindos de 250 escolas públicas de 8 estados.

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