Estudar História para combater intolerância contra os povos nativos do Brasil.
Texto: Anna Rita Barreto
A aventura humana na Terra originou uma incrível diversidade de formas de ser e de se estar no mundo. Essas diferentes experiências foram expressas em sons e palavras, cujos significados traduzem saberes ancestrais. Justamente reconhecendo a riqueza da história da humanidade, a Unesco declarou 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas, tendo como intenção a preservação, a revitalização e a promoção das mais de 6 mil línguas indígenas espalhadas pelo globo.
No Brasil, o Censo do ibge de 2010 identificou 274 línguas nativas, cada uma carregando consigo memórias, histórias e tradições específicas das mais de 300 etnias espalhadas pelo país. No entanto, os demais brasileiros pouco conhecem esse nosso poderoso patrimônio linguístico e cultural. Para muitos, todo ele se resume à figura folclórica e caricata do “índio”, construída ao longo dos séculos, inclusive com a colaboração dos livros escolares do passado. Para corrigir essa lacuna, o governo promulgou, em 2008, a lei 11.646, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura indígena nas escolas. Desde então, as coleções didáticas passaram reservar mais espaço aos povos originários e reconhecer o protagonismo indígena na formação do Brasil.
A exigência de dedicar mais atenção ao entendimento dos povos nativos foi recentemente reforçada pela bncc (Base Nacional Comum Curricular), na qual as habilidades e conteúdos informativos buscam, entre outros objetivos, educar os jovens para as relações étnico-raciais, promovendo uma cultura de convivência respeitosa, solidária e humana entre públicos de diferentes identidades. Essa política está em consonância com demandas nacionais e compromissos internacionais de combate a toda forma de intolerância, pois, apesar da ampla difusão do mito da democracia racial no Brasil, nossos índices de violência contra minorias são alarmantes. Segundo o último Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, produzido pelo cimi (Conselho Indigenista Missionário), em 2017 foram registrados 128 suicídios, 110 homicídios e a morte de 702 crianças de até 5 anos de idade. O relatório aponta também para a persistência dos problemas relativos à demarcação e à proteção das terras indígenas, continuamente ameaçadas pela expansão das áreas de pasto e cultivo, e pela exploração de recursos naturais como minério, madeira e água.
A proteção dos povos nativos brasileiros, de sua língua e cultura, depende do entendimento de seu modo de vida tradicional, ao qual está atrelada sua sobrevivência coletiva. Esse entendimento só será alcançado se as novas gerações se libertarem dos estereótipos cristalizados, sobre os quais se assentam os preconceitos que justificam e legitimam o ataque aos direitos constitucionais dos povos originários. Por essa razão, é de fundamental importância que os professores e professoras reestruturem seus cursos para ampliarem o tempo dedicado à história e cultura indígenas. Caso contrário, em breve, o Brasil vai ter-se apequenado e perdido parte importante se sua identidade e de sua inestimável riqueza linguística e cultural.
Anna Rita Barreto
é historiadora e mestre em História Social pela USP. Atua como professora de História e Atualidades na rede privada de ensino há 32 anos, e desde 2007 trabalha na elaboração de materiais didáticos para Ensino Fundamental 2 e Médio.
Elos entre línguas indígenas e territorialidades
Uma expedição pela questão da identidade dos povos em sala de aula.
Texto: Sergio Adas e Melhem Adas
Reconhecendo a função essencial das territorialidades para povos indígenas originários e comunidades tradicionais do Brasil, no que tange ao componente curricular Geografia, a Base Nacional Comum Curricular (bncc) dispõe sobre a temática, por meio da habilidade ef07ge03 do 7o ano do Ensino Fundamental.
Abre-se, aqui, um amplo leque de possibilidades de reflexão, de trabalho e de aprendizagens em sala de aula relacionadas à temática. Uma delas, em sintonia com atualidades, permite-nos enquanto professores considerar com os alunos o fato de que, em 2019, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) comemora o Ano Internacional das Línguas Indígenas. De acordo com a instituição, há mais de 6 mil línguas indígenas ao redor do globo, sendo que somente cerca de 3% da população mundial fala 96% delas; ainda, estima-se que a ameaça a este elemento identitário seja tão grave que uma língua indígena desaparece, em média, a cada duas semanas.
No Brasil, país com cerca de 300 povos indígenas originários, o Censo do ibge de 2010 registrou 274 línguas entre eles, divididas em dois grandes troncos linguísticos: Tupi e Macro-Jê. Segundo o Instituto Socioambiental (isa), existem, ainda, 19 famílias linguísticas que não se encontram agrupadas, uma vez que despidas de semelhanças para tanto.
Mas, afinal, qual a relação entre línguas indígenas e territorialidades, e como este tema poderia nos ajudar a trabalhar o foco da habilidade supracitada da bncc? De fato, as línguas indígenas, cada qual com suas características e especificidades, constituem elemento fundamental da identidade dos povos originários tanto do Brasil como de outros países. Trata-se de aspecto da cultura estreitamente relacionado à forma como tais povos compreendem o mundo. Em outras palavras, são sistemas que abarcam saberes e conhecimentos tradicionais que vão muito além da comunicação entre indivíduos, envolvendo, por exemplo, a integração entre os membros das comunidades, a educação de crianças e jovens e a preservação da memória e da história destes povos, especialmente pelo fato de serem culturas pautadas pela tradição oral.
A tudo isso, encontra-se relacionada a noção de territorialidade. De modo geral, a cultura dos povos originários abarca forte relação com o lugar onde suas comunidades se localizam e as relações que o envolvem, inclusive, em relação à forma como dele se apropriam. Aspectos como o cultivo de vegetais e rituais que englobam o uso de elementos do meio físico natural do território que ocupam — por exemplo, um rio ou uma serra —, evidenciam a força da territorialidade para tais povos. A “terra”, como muitos deles se referem ao espaço que ocupam, é parte de seu cotidiano e os representa no que tange à coletividade e à formação de sua identidade como povo; e, portanto, também como indivíduos. As línguas indígenas, neste contexto, expressam essas características culturais identitárias.
Nessa perspectiva, podemos considerar que a onu, por meio de um de seus principais órgãos, ao ter evidenciado a importância das línguas indígenas com o objetivo de sensibilizar a população mundial para o tema, permite-nos, em sala de aula, trabalhá-lo como apoio ao desenvolvimento de uma das habilidades da bncc, promovendo ao mesmo tempo junto aos educandos a valorização e a conscientização sobre a importância de preservação da identidade linguística dos povos indígenas e de suas territorialidades, elos inseparáveis em sua luta por direitos.
Melhem Adas
é bacharel e licenciado em Geografia pela PUC-SP. Professor da rede pública e em escolas privadas do estado de São Paulo. Autor de obras didáticas e paradidáticas de Geografia.
Sergio Adas
é professor e pesquisador da FFCLRP-USP. É bacharel e licenciado em Filosofia, doutor em Geografia Humana e Pós-doutorado em Educação. Desenvolve pesquisas em Ciências Humanas. É autor de obras didáticas de Geografia.